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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 25

No capítulo anterior: - Já está indo? Que pena... - lamentou ele. Usava um terno cinza e gravata preta e tinha uma pasta na mão. - Agora que cheguei...
Vera sorriu. Acenou ao garçom e cancelou a conta. Ainda pediu mais uma taça de vinho.
- Ir embora? Que nada! Tá sozinho?
- Estou.
- Me faça companhia então. Sempre é bom relembrarmos o passado - Agora Vera se sentia melhor. Muito melhor.


A Kombi buzinou três vezes e Fernanda foi à varanda. Quando as crianças viram a empregada aguardando, ficaram paradas por um momento ao lado do veículo com a porta lateral aberta. Quando ouviram a porta se fechando atrás deles, entraram pelo portão aberto, resignados.
Juninho ia na frente, com a mochila nas costas como tartaruga. Dequinha correu de braços abertos em direção da empregada e Anabela, amuada, segurava a alça da sua mochila e a arrastava pelo chão de cimento.
Fernanda preferiu o silêncio. Os dois maiores ainda estavam ressentidos com ela desde o episódio no dia anterior. No café da manhã nem olharam para ela enquanto servia a mesa. Já Dequinha, era só chamego:
- Tem bolo de chocolate?
Simpática, Fernanda respondeu:
- Claro que tem, fiz especialmente para você!
Quando Fernanda foi para a cozinha buscar o bolo, Dequinha disse aos irmãos:
- Viu? Ela fez um bolo "só" pra mim!
Sentado com os cotovelos sobre a mesa e com um bigode de leite sobre os lábios, Juninho retrucou, baixinho:
- Vai ter dor de barriga com esse bolo!
- Tomara que fique mesmo - acrescentou Anabela.
- Vou nada! - choramingou a caçula no instante que Fernanda voltava para a sala com uma fatia de bolo em um prato.
- Por quê tá chorando, querida? - Fernanda perguntou. Serviu o prato para Dequinha, que respondeu:
- Eles falaram que vou ficar com dor de barriga!
Fernanda sorriu e disse:
- Não vai, querida. É mais fácil acontecer alguma coisa com eles que você... - Ela encarou Juninho e Anabela, que abaixaram a cabeça. - Isso lhe garanto.
Agora, voltando do colégio, Juninho e Anabela entraram na sala principal no mais absoluto silêncio. Dequinha veio atrás, de mãos dadas com Fernanda.
- Agora vão tirar seus uniformes e lavem as mãos. Seu pai vai almoçar com vocês.
O rosto de Anabela se iluminou. Com seu pai em casa, talvez ele pudesse ver que essa nova empregada era uma moça má.
Fernanda percebeu o brilho nos olhos da menina. Largou a mão de Dequinha e se aproximou de Anabela. Pegou-a pelo braço e disse:
- Espero que durante o almoço, vossa senhorinha não fique com ideia de me provocar na frente do seu pai.
Anabela tentou se livrar daquela mão, mas Fernanda apertou mais ainda.
- Ai, tá me machucando!
- Shhhh, caladinha...
Juninho, paralisado, ainda estava com a mochila nas costas. Ainda agarrando o braço de Anabela, Fernanda mirou sua atenção ao menino:
- Ei, paspalho! Vai ficar aí que nem dois de paus? Vai tirando essa mochila das costas! Não quero ouvir depois seus pais reclamando que tem um filho corcunda!
Mecanicamente e sem uma palavra, Juninho tirou a mochila e jogou no chão ao seu lado. Fernanda ordenou:
- Bota essa merda no lugar dela! Agora, dentuço!
Nunca o chamaram de dentuço, nem os colegas do colégio. Tremendo, pegou a mochila pelas alças e a colocou em cima do sofá. Ainda apertando o magro braço de Anabela, Fernanda recomendou:
- Entenderam o que eu falei? Não vou repetir... - ela riu com uma lembrança. A idiota da sua patroa falava desse mesmo jeito. - Seu pai foi no mercado do Marquinhos e já está voltando. Quando ele chegar, quero ver vocês sorrindo de orelha a orelha pra ele. E quando eu botar seus pratos, vocês vão falar que a comida está deliciosa! Entenderam?
- Ai, tá machucando meu braço - Anabela chorava.
- Que menina mais fresca! - Ela abriu a mão e viu o braço da garota vermelho. - Isso vai sair logo. Mas se seu pai olhar isso e perguntar o que aconteceu, fale que bateu em algum lugar.
Anabela esfregou o braço dolorido. Os dois esperavam que ela ordenasse mais alguma coisa. E foi que Fernanda fez:
- Agora vão. Dentro de meia hora, todos limpinhos e cheirosos para o almoço.
Juninho e Anabela saíram correndo da sala principal. Uma sensação de poder dominava a moça. Fernanda olhou para o canto e perto da sala de estar, onde tinha o horrível retrato do falecido pendurado na parede, Dequinha, imobilizada, assistiu a tudo. Fernanda se aproximou dela, a abraçou e sorrindo, disse:
- Seus irmãos nunca mais vão mexer contigo, Dequinha.
- Vo... Você machucou minha irmã...
- Ah, não machuquei ninguém. Ela que tem a pele muito branca e qualquer coisinha marca.
- Eu... eu gosto deles... são meus irmãos...
Fernanda fez uma careta.
- Esquece eles. O importante é que ninguém vai te machucar. - Vendo que a menina tinha lágrimas nos olhos, completou: - Só não fale nada pra ninguém. Eu te protejo, mas isso é segredo nosso!
- Tá... um segredo...
- Boa menina - disse Fernanda, acariciando os cabelos de Dequinha.
                                    ************
Aurélio aproveitou o dia que tirou de folga para beber cerveja no mercado de Marquinhos. Enquanto aguardava o almoço, ficou em uma mesa na calçada com uma garrafa de Itaipava na sua frente enquanto Marquinhos estava sentado em um banquinho na porta da mercearia, também com uma Itaipava ao seu lado.
Era quase meio-dia e meio e Aurélio esvaziava a terceira garrafa de cerveja no seu copo. Alguns moradores passavam em frente e os cumprimentavam. Aurélio retribuía os acenos. Olhou seu copo vazio e disse:
- Pega a saideira, Marquinhos, daqui a pouco as crianças tão chegando pra almoçar...
- Pega você, seu preguiçoso - Marquinhos puxou a caneta atrás da orelha e anotou em um caderno. - Já marquei mais uma.
- Olha lá, hein - disse Aurélio, passando por ele a caminho da geladeira. Pegou uma garrafa bem gelada e lembrou: - Não esqueça na hora que Vera vier acertar as contas. Nada de cerveja.
Marquinhos mordeu a tampa da caneta e disse:
- Já sei... boto como se fosse café, macarrão, feijão... - Ele sabia que Vera bancava a casa e que Aurélio era um vagabundo sem vergonha. Mas como lucrava em cima dos cigarros e cervejas que ele consumia, fazia o que ele pedia.
Aurélio voltou para sua mesa e no momento que encheu o copo, viu um homem de óculos escuros se aproximando. Era um tipo mediano, de cabelos crespos e a cara marcada por furinhos, como se no passado tivesse tido varíola ou coisa parecida.
- Boa tarde - disse o sujeito. - Ainda dá pra beber uma gelada ou o senhor vai fechar seu estabelecimento pro almoço?
- Não se preocupe com a hora. Almoço aqui mesmo. Qual cerveja?
- Antártica - pediu o sujeito de óculos escuros. Puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da entrada do mercado. Marquinhos voltou com a garrafa e um copo na mão. Serviu o estranho e voltou para o banquinho.
O sujeito de óculos escuros perguntou:
- O amigo pode me informar se tem uma casa pra alugar por aqui?
Marquinhos coçou o peito cabeludo e respondeu:
- Olha... acho que não tem não... Pra achar uma casa disponível na área sempre foi difícil. Os moradores daqui praticamente nascem e morrem no bairro. Se fosse um quarto, a situação era outra. É o que mais tem por aqui.
- Percebi. Se eu fosse sozinho, encararia um quarto. O problema é minha esposa...
- Com família então fica quase impossível.
O sujeito de óculos escuros deu de ombros, mas parecia ser aquele tipo de cara que não desiste fácil.
- Trabalhando por aqui? - Perguntou Aurélio.
O sujeito virou-se na direção de Aurélio e respondeu, de modo vago:
- Sou autônomo. Meu ramo é vendas de seguros.
- Eu também sou autônomo - disse Aurélio. - Só que trabalho com imóveis.
O sujeito não disse mais nada. Pegou um palito de dentes e esqueceu-o no canto da boca.
Aurélio olhou as horas no relógio e disse:
- Os meninos devem ter chegado. Não esquece, Marquinhos, nada de cevada no recibo!
Marquinhos levantou o polegar como positivo e se encostou no balcão. O sujeito de óculos escuros perguntou:
- Tava vindo pra cá e vi um casarão bem antigo lá em cima.
- O dono dele era esse que acabou de sair.
- Mesmo? - O sujeito tirou os óculos. Seus olhos eram de um azul vivo. - Aquele casarão parece até daqueles filmes de cinema...
Marquinhos ia completar: "Filmes de terror", mas preferiu ficar calado. À primeira vista, quem não o conhecesse acharia que era displicente, mas Marquinhos observava o estranho. Não foi com a cara dele.
Mas como não ia ser amigo dele, consumindo bastante e pagando direitinho, deixa ele na mesa e eu aqui na minha, pensou ele.
O estranho colocou os óculos de novo. Parecia compenetrado enquanto chupava o palito no canto da boca. Pela sua cara, parecia satisfeito.

Continua...

No próximo capítulo: Dona Vitória continua esquecida no seu quarto trancado

Rogerio de C. Ribeiro

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