Mas o que ele tanto procurava ali? Já sabia que por ali não tinha nenhuma casa para alugar...
- A pior coisa do mundo é uma pessoa tapada. A gente fala uma coisa mas ela não acredita nas nossas palavras. Ele que suba e desça a rua. O problema é dele...
************************
Quatrocentos metros abaixo do casarão, o sujeito de óculos escuros cuspiu o palito que tinha no canto da sua boca e admirou o casarão acima. Ele viu o magricela que estava bebendo cerveja na mesa ao lado na varanda, com certeza o vendo ali.
- Vai me ver mais vezes, babaca - disse ele, descendo a rua.
O
silêncio no casarão agradava Aurélio, mas para as crianças era o contrário.
Juninho
e Anabela brincavam no videogame, mas pela primeira vez não brigavam e nem se
xingavam. Estavam sentados no chão do quarto, de pernas cruzadas, compenetrados
no jogo, mas ao mesmo tempo, apavorados.
Agora,
o braço de Anabela tinha uma pequena mancha rosa. Mas ainda doía. A menina
tentou mostrar para seu pai durante o almoço, mas cada vez que levantava o
braço, notava Fernanda, em pé no arco que dava para a cozinha, a fuzilando com
os olhos e gesticulando com o dedo indicador.
Anabela
manteve o braço caído ao lado do corpo durante a refeição, e tão logo terminou,
Fernanda se materializou ao seu lado para pegar o prato, ocultando Anabela do
campo de visão do seu pai.
Juninho
era outro que estava apavorado. Sempre foi o menino da casa, bajulado por sua
mãe. Gostava de atazanar com a vida da caçula, mas para sua cabeça, era só
traquinagem. Tudo bem que de vez em quando podia ser um pouco malvado com
Dequinha, mas ora bolas, ela era a caçula!
Depois
do almoço, foram para o quarto das meninas. Juninho e Anabela cochichavam entre
eles enquanto Dequinha tinha um calhamaço de papéis que Fernanda arrumou para
ela e fazia seus rabiscos que chamava de desenhos.
-
Quando ela te agarrou, quase mijei de medo - confessou Juninho, com a cara
séria. - Pensei que ela ia quebrar seu braço!
Anabela
massageava a mancha vermelha e concordou:
-
Também fiquei com medo. Ela é maluca!
-
Muito doida!
-
Não entendo como papai não notou isso ainda!
-
Às vezes, os adultos são burros - filosofou Juninho.
Anabela
sorriu. Seu irmão tinha umas tiradas engraçadas. Mas logo seu sorriso sumiu e
ela disse, em tom conspiratório:
-
Temos que ter cuidado com ela, Juninho.
-
O que temos mesmo é mostrar pra mãe e o pai quem é ela.
-
Pensei nisso. Mas como?
-
Sei lá...
Dequinha
desceu da cama onde desenhava e mostrou uma folha para eles. Juninho disse,
zangado:
-
Sai! Você é amiga da empregada!
Dequinha
se assustou com a raiva do irmão.
-
Ué! Ela é boazinha!
-
Só com você - disse Anabela. - Olha o que ela fez no meu braço!
-
Ela me falou que você é muito branca, por isso qualquer coisinha marca...
-
Vai nessa. Tá doendo à beça!
-
Vai, deixa a gente em paz - disse Juninho. - Fica lá com ela!
Magoada,
Dequinha saiu do quarto levando o desenho que mostrou para seu pai na sala.
Anabela cochichou:
-
Vamos investigar Fernanda... mas é segredo! Não pode falar com papai e nem
mamãe!
Os
olhos de Juninho acenderam. Adorava brincar de detetive.
-
É!!!!
Anabela
estendeu a sua mão e Juninho a apertou. Selavam ali um pacto.
******************
De
tardinha, Juninho andava pela garagem procurando seu caminhão de bombeiros que
deixara ali. O lugar era escuro, com prateleiras pregadas nas paredes laterais
e várias caixas empilhadas com jornais velhos, roupas rasgadas, discos de vinil
antigos e outras quinquilharias.
O
menino ia pisando pelo linóleo manchado de óleo e graxa com extremo cuidado,
temeroso que uma ratazana saísse do seu
esconderijo e pulasse em cima dele. Seu pai avisara a ele e suas irmãs que a
garagem era um ninho de baratas e ratos, mas Juninho ainda não tinha visto
nenhum deles. A única coisa que viu foi uma teia de aranha com uma mosca presa
nela.
Anabela
conseguiu pegar no sono da tarde mesmo com o braço doendo. Juninho se cansou de
ficar jogando sozinho e Dequinha era uma chata de galocha, além de ser amiga
com a maluca. Decidiu que ia brincar no seu quarto.
Quando
entrou no seu quarto, procurou pelo carrinho de bombeiro, mas no meio da
balbúrdia de jogos, brinquedos, Dvds, cama desarrumada com o travesseiro e o
lençol espalhados pelo chão, foi uma tarefa quase impossível achar alguma coisa
ali dentro.
Como
tinha todo tempo do mundo e só ia jantar às oito da noite, se dedicou na
procura do seu objeto do desejo. Uma hora depois e com poeira incrustado pela
camisa e nos cabelos, Juninho estirou-se de braços abertos como uma cruz no
pequeno tapete ao lado da cama.
Pôs
as mãos entrelaçadas atrás da cabeça e ficou olhando os pontos cinza no teto.
Mais uma das suas invenções! Pegava um rolo de papel higiênico, fez várias
bolinhas e depois que molhava, lançava como se fosse um míssil no teto, criando
assim aquelas crostas que pareciam pedaços de cimento.
Enquanto
admirava sua obra de arte, lembrou-se de onde podia ter deixado o seu caminhão
de bombeiros. Dias atrás levara ele para brincar no jardim e como choveu forte,
largou-o na entrada da garagem e voltou correndo pela escada até a cozinha.
Juninho
foi ao quarto das suas irmãs e viu que Anabela ainda dormia, esparramada na cama
com o travesseiro no chão. Ela estava sozinha, Dequinha devia ter ido para a
sala.
Realmente
ela estava lá com seu pai e aquela bruxa, que carregava uma bandeja. Aproveitou
que a maluca estava ali e foi para a cozinha, onde desceu pela escada até o
jardim.
Na
entrada da garagem não encontrou nada, nenhum vestígio do carrinho. Talvez
Belinda tivesse guardado lá dentro. Juninho respirou fundo, inspirou e entrou
na garagem semiescura.
Na
frente das irmãs e dos seus colegas, Juninho se mostrava como se não tivesse
medo de nada. Sozinho, tinha que se controlar para não sair dali correndo.
Caixas
e mais caixas empilhadas ocupavam as laterais da parede. Juninho buscou com
olhos arregalados algum sinal de um carro vermelho ou na pior das hipóteses,
uma ratazana saindo do seu esconderijo e pulando em cima dele.
Localizou
em cima de uma pilha de três caixas seu carrinho de bombeiros. Suspirou
aliviado e atravessou toda extensão da garagem, driblando objetos espalhados
pelo chão.
Quando
chegou, ficou na ponta dos pés para alcançar a traseira do carrinho. Seus dedos
encostaram e sem querer empurrou-o mais na frente. Resolveu ver se pulando
conseguia pegar; no primeiro tapa que deu, derrubou as caixas, que caíram em
cima dele.
Foi
um estrondo de caixas e objetos que o cobriram. Ele caiu deitado de costas e em
cima dele tinha vestidos embolorados, chapéus, livros.
Tirou
tudo de cima e sacudiu os braços e as pernas. Estava imundo pela poeira. Viu
seu carrinho descambado sobre um álbum de fotografias aberto.
Curioso,
pegou seu brinquedo e o álbum. Saiu logo da garagem, antes que uma ratazana
mal-humorada surgisse depois de todo barulho.
Lá
fora, no jardim, ele sentou-se no banco de cimento e folheou as páginas do
álbum. A maioria das fotos eram em preto e branco. Para Juninho, que nasceu na
era da tecnologia digital, aquilo tudo era velharia.
"Acho
que essa aqui é vovó...", estranhou o menino. Para ele, sua avó já tinha
nascido velha!
O
retrato mostrava uma moça bem vestida, com um vestido em forma de tubinho, com
o cabelo armado em laquê. Ela posava sorridente em frente de um Cadillac
branco. Ela tinha luvas nas mãos e acenava. No chão gramado, uma sombra se
projetava. Devia ser o fotógrafo.
Juninho
virou as páginas, mas cansou-se em ficar olhando aqueles retratos antigos.
Desinteressado, largou o álbum em cima do banco de cimento e subiu com seu
carrinho de bombeiro. Isso sim era mais importante pra ele!
******************
Fernanda
vigiava as panelas no fogão de seis bocas. Eram quase seis horas e dentro de
duas horas a droga do jantar seria servido para essa família idiota.
Compenetrada, nem percebeu que Dequinha estava ao seu lado.
-
Tá chateada comigo?
-
Não - disse a empregada, seca.
-
É por causa daquilo? Não falei com papai...
Fernanda
se afastou do fogão. A pirralha estava enchendo sua paciência com aquela
vozinha molenga. Dequinha a seguiu até que sentaram à mesa.
-
Eu sei que não falou - disse Fernanda, mudando o tom da voz para suave.
"Se falasse, eu teria ouvido tudo, idiota!"
-
Meus irmãos tão de mal comigo.
-
São dois imbecis - Fernanda se arrependeu e consertou. - Quero dizer, dois
cabeças duras. Não liga para isso, daqui a pouco falam com você.
-
Por quê vovó tava fedendo daquele jeito?
Epa!
Sinal de alerta!
-
Do que tá falando, meu bem?
-
Vi quando levou vovó pro banheiro... Ela tava com um cheirooooo - Dequinha
sacudiu a mão na frente do seu nariz e fechou os olhos.
-
Pessoas que não andam às vezes faz ... - Ela cochichou no ouvido da menina -
coco nas calças!
-
Ih! Não quero ficar igual à vovó!
-
Tem muito tempo ainda até que chegue na idade dela...
-
Tomara! - Dequinha suspirou aliviada.
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
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