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terça-feira, 9 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 29

No capítulo anterior: Por algum motivo, não gostara dele. Pareceu esnobe...
Mas o que ele tanto procurava ali? Já sabia que por ali não tinha nenhuma casa para alugar...
- A pior coisa do mundo é uma pessoa tapada. A gente fala uma coisa mas ela não acredita nas nossas palavras. Ele que suba e desça a rua. O problema é dele...
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Quatrocentos metros abaixo do casarão, o sujeito de óculos escuros cuspiu o palito que tinha no canto da sua boca e admirou o casarão acima. Ele viu o magricela que estava bebendo cerveja na mesa ao lado na varanda, com certeza o vendo ali.
- Vai me ver mais vezes, babaca - disse ele, descendo a rua.


O silêncio no casarão agradava Aurélio, mas para as crianças era o contrário.
Juninho e Anabela brincavam no videogame, mas pela primeira vez não brigavam e nem se xingavam. Estavam sentados no chão do quarto, de pernas cruzadas, compenetrados no jogo, mas ao mesmo tempo, apavorados.
Agora, o braço de Anabela tinha uma pequena mancha rosa. Mas ainda doía. A menina tentou mostrar para seu pai durante o almoço, mas cada vez que levantava o braço, notava Fernanda, em pé no arco que dava para a cozinha, a fuzilando com os olhos e gesticulando com o dedo indicador.
Anabela manteve o braço caído ao lado do corpo durante a refeição, e tão logo terminou, Fernanda se materializou ao seu lado para pegar o prato, ocultando Anabela do campo de visão do seu pai.
Juninho era outro que estava apavorado. Sempre foi o menino da casa, bajulado por sua mãe. Gostava de atazanar com a vida da caçula, mas para sua cabeça, era só traquinagem. Tudo bem que de vez em quando podia ser um pouco malvado com Dequinha, mas ora bolas, ela era a caçula!
Depois do almoço, foram para o quarto das meninas. Juninho e Anabela cochichavam entre eles enquanto Dequinha tinha um calhamaço de papéis que Fernanda arrumou para ela e fazia seus rabiscos que chamava de desenhos.
- Quando ela te agarrou, quase mijei de medo - confessou Juninho, com a cara séria. - Pensei que ela ia quebrar seu braço!
Anabela massageava a mancha vermelha e concordou:
- Também fiquei com medo. Ela é maluca!
- Muito doida!
- Não entendo como papai não notou isso ainda!
- Às vezes, os adultos são burros - filosofou Juninho.
Anabela sorriu. Seu irmão tinha umas tiradas engraçadas. Mas logo seu sorriso sumiu e ela disse, em tom conspiratório:
- Temos que ter cuidado com ela, Juninho.
- O que temos mesmo é mostrar pra mãe e o pai quem é ela.
- Pensei nisso. Mas como?
- Sei lá...
Dequinha desceu da cama onde desenhava e mostrou uma folha para eles. Juninho disse, zangado:
- Sai! Você é amiga da empregada!
Dequinha se assustou com a raiva do irmão.
- Ué! Ela é boazinha!                                 
- Só com você - disse Anabela. - Olha o que ela fez no meu braço!
- Ela me falou que você é muito branca, por isso qualquer coisinha marca...
- Vai nessa. Tá doendo à beça!
- Vai, deixa a gente em paz - disse Juninho. - Fica lá com ela!
Magoada, Dequinha saiu do quarto levando o desenho que mostrou para seu pai na sala. Anabela cochichou:
- Vamos investigar Fernanda... mas é segredo! Não pode falar com papai e nem mamãe!
Os olhos de Juninho acenderam. Adorava brincar de detetive.
- É!!!!
Anabela estendeu a sua mão e Juninho a apertou. Selavam ali um pacto.
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De tardinha, Juninho andava pela garagem procurando seu caminhão de bombeiros que deixara ali. O lugar era escuro, com prateleiras pregadas nas paredes laterais e várias caixas empilhadas com jornais velhos, roupas rasgadas, discos de vinil antigos e outras quinquilharias.
O menino ia pisando pelo linóleo manchado de óleo e graxa com extremo cuidado, temeroso que  uma ratazana saísse do seu esconderijo e pulasse em cima dele. Seu pai avisara a ele e suas irmãs que a garagem era um ninho de baratas e ratos, mas Juninho ainda não tinha visto nenhum deles. A única coisa que viu foi uma teia de aranha com uma mosca presa nela.
Anabela conseguiu pegar no sono da tarde mesmo com o braço doendo. Juninho se cansou de ficar jogando sozinho e Dequinha era uma chata de galocha, além de ser amiga com a maluca. Decidiu que ia brincar no seu quarto.
Quando entrou no seu quarto, procurou pelo carrinho de bombeiro, mas no meio da balbúrdia de jogos, brinquedos, Dvds, cama desarrumada com o travesseiro e o lençol espalhados pelo chão, foi uma tarefa quase impossível achar alguma coisa ali dentro.
Como tinha todo tempo do mundo e só ia jantar às oito da noite, se dedicou na procura do seu objeto do desejo. Uma hora depois e com poeira incrustado pela camisa e nos cabelos, Juninho estirou-se de braços abertos como uma cruz no pequeno tapete ao lado da cama.
Pôs as mãos entrelaçadas atrás da cabeça e ficou olhando os pontos cinza no teto. Mais uma das suas invenções! Pegava um rolo de papel higiênico, fez várias bolinhas e depois que molhava, lançava como se fosse um míssil no teto, criando assim aquelas crostas que pareciam pedaços de cimento.
Enquanto admirava sua obra de arte, lembrou-se de onde podia ter deixado o seu caminhão de bombeiros. Dias atrás levara ele para brincar no jardim e como choveu forte, largou-o na entrada da garagem e voltou correndo pela escada até a cozinha.
Juninho foi ao quarto das suas irmãs e viu que Anabela ainda dormia, esparramada na cama com o travesseiro no chão. Ela estava sozinha, Dequinha devia ter ido para a sala.
Realmente ela estava lá com seu pai e aquela bruxa, que carregava uma bandeja. Aproveitou que a maluca estava ali e foi para a cozinha, onde desceu pela escada até o jardim.
Na entrada da garagem não encontrou nada, nenhum vestígio do carrinho. Talvez Belinda tivesse guardado lá dentro. Juninho respirou fundo, inspirou e entrou na garagem semiescura.
Na frente das irmãs e dos seus colegas, Juninho se mostrava como se não tivesse medo de nada. Sozinho, tinha que se controlar para não sair dali correndo.
Caixas e mais caixas empilhadas ocupavam as laterais da parede. Juninho buscou com olhos arregalados algum sinal de um carro vermelho ou na pior das hipóteses, uma ratazana saindo do seu esconderijo e pulando em cima dele.
Localizou em cima de uma pilha de três caixas seu carrinho de bombeiros. Suspirou aliviado e atravessou toda extensão da garagem, driblando objetos espalhados pelo chão.
Quando chegou, ficou na ponta dos pés para alcançar a traseira do carrinho. Seus dedos encostaram e sem querer empurrou-o mais na frente. Resolveu ver se pulando conseguia pegar; no primeiro tapa que deu, derrubou as caixas, que caíram em cima dele.
Foi um estrondo de caixas e objetos que o cobriram. Ele caiu deitado de costas e em cima dele tinha vestidos embolorados, chapéus, livros.
Tirou tudo de cima e sacudiu os braços e as pernas. Estava imundo pela poeira. Viu seu carrinho descambado sobre um álbum de fotografias aberto.
Curioso, pegou seu brinquedo e o álbum. Saiu logo da garagem, antes que uma ratazana mal-humorada surgisse depois de todo barulho.
Lá fora, no jardim, ele sentou-se no banco de cimento e folheou as páginas do álbum. A maioria das fotos eram em preto e branco. Para Juninho, que nasceu na era da tecnologia digital, aquilo tudo era velharia.
"Acho que essa aqui é vovó...", estranhou o menino. Para ele, sua avó já tinha nascido velha!
O retrato mostrava uma moça bem vestida, com um vestido em forma de tubinho, com o cabelo armado em laquê. Ela posava sorridente em frente de um Cadillac branco. Ela tinha luvas nas mãos e acenava. No chão gramado, uma sombra se projetava. Devia ser o fotógrafo.
Juninho virou as páginas, mas cansou-se em ficar olhando aqueles retratos antigos. Desinteressado, largou o álbum em cima do banco de cimento e subiu com seu carrinho de bombeiro. Isso sim era mais importante pra ele!
                            ******************
Fernanda vigiava as panelas no fogão de seis bocas. Eram quase seis horas e dentro de duas horas a droga do jantar seria servido para essa família idiota. Compenetrada, nem percebeu que Dequinha estava ao seu lado.
- Tá chateada comigo?
- Não - disse a empregada, seca.
- É por causa daquilo? Não falei com papai...
Fernanda se afastou do fogão. A pirralha estava enchendo sua paciência com aquela vozinha molenga. Dequinha a seguiu até que sentaram à mesa.
- Eu sei que não falou - disse Fernanda, mudando o tom da voz para suave. "Se falasse, eu teria ouvido tudo, idiota!"
- Meus irmãos tão de mal comigo.
- São dois imbecis - Fernanda se arrependeu e consertou. - Quero dizer, dois cabeças duras. Não liga para isso, daqui a pouco falam com você.
- Por quê vovó tava fedendo daquele jeito?
Epa! Sinal de alerta!
- Do que tá falando, meu bem?
- Vi quando levou vovó pro banheiro... Ela tava com um cheirooooo - Dequinha sacudiu a mão na frente do seu nariz e fechou os olhos.
- Pessoas que não andam às vezes faz ... - Ela cochichou no ouvido da menina - coco nas calças!
- Ih! Não quero ficar igual à vovó!
- Tem muito tempo ainda até que chegue na idade dela...
- Tomara! - Dequinha suspirou aliviada.

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

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