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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 24

No capítulo anterior: Fernanda tinha as mãos juntas sobre o avental. Ela concordou:
- Sim, claro. Mas mesmo que o senhor acorde tarde, saiba que sempre vai ter um café fresquinho te esperando.
Antes que ele dissesse algo, ela saiu da sala de jantar.
Enternecido com o pequeno gesto da moça, Aurélio disse para si mesmo:
- Tão linda e tão inocente...
Ainda sentia o calor dela no braço. E instintivamente, cheirou-o profundamente. Deliciou-se com o leve perfume dela.

Vera e Cida, sua secretária e de vez em quando, confidente, almoçavam no restaurante Bela Blú, na rua da Conceição. Àquela hora haviam poucos fregueses nas mesas. Dificilmente Vera ia a um restaurante na hora do almoço; se alguém a visse mal-humorada enquanto almoçava, com certeza o lugar estaria lotado e ela tivesse enfrentado uma fila quilométrica.
Quem não ficou nada contente com o convite para o almoço foi Cida. Acostumada de almoçar à uma hora da tarde; quando sua patroa a chamava, sabia que ia comer só depois das quatro horas.
Mas conhecia bem a advogada e nas raras vezes que Vera a convidava, sabia que ela queria desabafar alguma coisa.
Desmarcou com seu novo "ficante", o Abelhão, um negro de quase dois metros de altura que conheceu no baile funk da Cinco de Julho, clube no Barreto, perto da comunidade que morava, com uma desculpa esfarrapada:
- Não dá, Preto! Tá, eu também queria almoçar contigo. Mas a patroa cismou que preciso substituí-la no Fórum... É, eu não te disse que trabalho com uma advogada? Então... Mais tarde te ligo, meu Preto cheiroso. Vamos sim, uma cerveja mais tarde... Marcado!
Desligou o telefone com pouco de melancolia. Esse era o seu mal. Quando conhecia um sujeito, e esse lhe agradasse - principalmente na cama! - acreditava que tinha encontrado sua alma gêmea, o homem que ia envelhecer junto com ela... Se bem que ela envelheceria mais rápido. Um dos atributos do homem que mais lhe chamava atenção era a idade. Abelhão, por exemplo, tinha 24 anos. E com fôlego para dar e vender!
Já que não ia desfrutar sua hora de almoço com seu novo Preto ( Tática que ela usava com os namorados. Chamava-os todos de Preto, mesmo se o cara fosse descendente de alemães), ficou fazendo palavras cruzadas enquanto esperava Vera, que passou toda manhã e parte da tarde trancada na sua sala.
Quando isso acontecia, as coisas não andavam legal para a advogada. Podiam ser as contas, uma em cima da outra, que estivesse infernizando a tranquilidade de Vera.
- Não... - pensou Cida, mordendo a ponta da caneta, tentando descobrir o nome do ator que atuou em "Era uma vez no Oeste" com nove letras. - A doutora nunca foi tranquila. Pelo contrário! O gênio dela já afastou muitos clientes.
Mas uma das coisas que aprendeu, nesses anos que trabalhava ali, era ignorar completamente os rompantes da patroa. "Não, já basta quando ela quer desabafar. Sempre sobra pra mim. Como agora!"
Vera saiu da sua sala e disse:
- Vamos.
Cida trancou a porta do escritório e levou sua bolsa. O desabafo dava a impressão que ia ser longo...
No restaurante, Cida devorava uma macarronada à bolonhesa furiosamente. Vera mal tocava no seu prato, uma lasanha ao sugo. Bebia lentamente uma taça de vinho tinto.
Um pianista tocava uma melodia triste. Dedilhava pelas teclas melancolicamente, talvez influenciado pelo silêncio naquele restaurante vazio.
Vera encheu outra taça de vinho e ofereceu à mulata. Com a boca cheia e os lábios sujos de molho de tomate, Cida negou com um gesto no indicador. Quando engoliu, comentou:
- Sou mais da cerveja, doutora - Ela deu mais uma garfada no macarrão e dessa vez falou com a boca cheia: - Essa macarronada tá que tá! Um dia vou aprender a fazer igual a esse! Preto vai adorar!
Vera disse, distraída:
- Você não me falou uma vez que seu namorado detestava massa?
- Ih, doutora! - A mulata riu, exibindo dentes brancos e perfeitos. - Esse foi outro Preto! Agora a história é outra!
Vera deu um meio sorriso e comentou, enquanto girava a taça com um pouco de vinho pela haste:
- Queria ser como você, Cida.
- Não me diga! A senhora não ia gostar!
- O que queria dizer é do seu despojamento, da sua alegria na vida.
- Ah, isso sou mesmo. Comigo não tem mau tempo. Mas a senhora também é uma pessoa alegre, doutora.
- Já fui mais. Ultimamente tenho tido alguns probleminhas e isso vem me chateando...
Havia uma necessidade em desabafar seus problemas domésticos com Cida, mas Vera freou a tempo essa compulsão. Uma coisa era reclamar dos poucos clientes que surgiam no escritório, das dificuldades financeiras de arcar com todos compromissos em dia. Isso Cida já sabia de cor e salteado. Outra coisa era dizer que Aurélio não queria nada com a hora do brasil, que todas despesas de casa saíam da pequena pensão da mãe e do que sobrou da economia que seu pai fez durante toda sua vida. Como diria a Cida sobre o sujeito que queria comprar o casarão e agora, seu marido também queria que ela vendesse! Era provável que a secretária dissesse simplesmente: "Se livra do problema e vá morar perto da praia!"
Preferiu ficar quieta, só bebendo o vinho. Cida terminava com seu prato e agora passava um pedaço de pão no molho que sobrou. Deu uma olhada na lasanha intacta e Vera disse:
- Se quiser, pode comer.
- Doutora, eu não tava de olho!
- Eu sei - Vera mentiu. - Pode comer.
- Já tô com a pança cheia, doutora. Mas se a senhora não se importa mesmo, vou pedir ao garçom pra fazer uma quentinha.
Vera concordou. Passou o dia inteiro trancada na sua sala, pensando.
Não se sentia feliz com Aurélio ao seu lado. Mas também não podia escorraçá-lo da casa, afinal era o pai das crianças. E elas não entenderiam uma súbita separação.
O que ela sentia mesmo era pena dele. Um pobre fracassado que nunca deu certo na vida profissional. Ela sempre esteve ao lado dele o apoiando, aguardando pacientemente que ele tivesse sucesso na carreira, mas os anos foram passando e nada do sucesso aparecer.
Viu Cida pedindo uma garrafa de cerveja. Quase disse que ela ainda estava em horário de expediente, mas desistiu. Esperava que com a companhia da secretária, ouvindo seus casos amorosos, a divertisse. Mas a melancolia não a abandonava.
Cida perguntou:
- A senhora quer que eu volte pro escritório?
- Não, tá liberada. Não teve nenhuma ligação até agora...
- E a doutora? Se quiser, fico aqui com a senhora.
Vera sacudiu a cabeça.
- Não, pode ir. Vou beber essa taça e também estou indo.
Cida esvaziou a garrafa de cerveja, pegou a quentinha com a lasanha embrulhado em papel azul e desejou boa tarde.
Sozinha com a taça pela metade de vinho, Vera pediu outra taça ao garçom. Bebeu o resto e observou as pessoas no restaurante.
Cada um sentado, alguns sozinhos e outros acompanhados, bebiam ao som do melancólico piano. Sentindo-se um pouco alta, teve certeza que foi uma péssima ideia ter escolhido aquele local para beber vinho. Mas também não podia ir nos lugares que frequentava para não correr o risco de se encontrar com Aurélio ou algum conhecido.
O que a deixou frustrada o dia inteiro foi ver seu marido enfiado na cama enquanto ela saía para a rua para trabalhar. Aquilo foi a gota d'água que transbordou o copo.
Ela se conhecia. Sabia que se não falasse com ele, ia explodir ou ter algum troço ruim. Ia beber mais uma taça, voltaria para casa e diria tudo que estava sentindo para ele. E se fosse pra expulsar de casa, faria isso também!
Fez um gesto para o garçom trazer a comanda da conta quando ouviu ao seu lado:
- Nunca pensei que ia te encontrar aqui!
Assustada, olhou para o lado e ficou surpresa.
Era seu antigo colega de escola, Rodrigo Antunes.
- Já está indo? Que pena... - lamentou ele. Usava um terno cinza e gravata preta e tinha uma pasta na mão. - Agora que cheguei...
Vera sorriu. Acenou ao garçom e cancelou a conta. Ainda pediu mais uma taça de vinho.
- Ir embora? Que nada! Tá sozinho?
- Estou.
- Me faça companhia então. Sempre é bom relembrarmos o passado - Agora Vera se sentia melhor. Muito melhor.

Continua...

No próximo capítulo: Fernanda e as crianças de novo e Aurélio vê novamente o sujeito que perambula pela rua do seu bairro.

Rogerio de C. Ribeiro

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