- Sim, claro. Mas mesmo que o senhor acorde tarde, saiba que sempre vai ter um café fresquinho te esperando.
Antes que ele dissesse algo, ela saiu da sala de jantar.
Enternecido com o pequeno gesto da moça, Aurélio disse para si mesmo:
- Tão linda e tão inocente...
Ainda sentia o calor dela no braço. E instintivamente, cheirou-o profundamente. Deliciou-se com o leve perfume dela.
Vera
e Cida, sua secretária e de vez em quando, confidente, almoçavam no restaurante
Bela Blú, na rua da Conceição. Àquela hora haviam poucos fregueses nas mesas.
Dificilmente Vera ia a um restaurante na hora do almoço; se alguém a visse mal-humorada
enquanto almoçava, com certeza o lugar estaria lotado e ela tivesse enfrentado
uma fila quilométrica.
Quem
não ficou nada contente com o convite para o almoço foi Cida. Acostumada de
almoçar à uma hora da tarde; quando sua patroa a chamava, sabia que ia comer só
depois das quatro horas.
Mas
conhecia bem a advogada e nas raras vezes que Vera a convidava, sabia que ela
queria desabafar alguma coisa.
Desmarcou
com seu novo "ficante", o Abelhão, um negro de quase dois metros de
altura que conheceu no baile funk da Cinco de Julho, clube no Barreto, perto da
comunidade que morava, com uma desculpa esfarrapada:
-
Não dá, Preto! Tá, eu também queria almoçar contigo. Mas a patroa cismou que
preciso substituí-la no Fórum... É, eu não te disse que trabalho com uma
advogada? Então... Mais tarde te ligo, meu Preto cheiroso. Vamos sim, uma
cerveja mais tarde... Marcado!
Desligou
o telefone com pouco de melancolia. Esse era o seu mal. Quando conhecia um
sujeito, e esse lhe agradasse - principalmente na cama! - acreditava que tinha
encontrado sua alma gêmea, o homem que ia envelhecer junto com ela... Se bem
que ela envelheceria mais rápido. Um dos atributos do homem que mais lhe
chamava atenção era a idade. Abelhão, por exemplo, tinha 24 anos. E com fôlego
para dar e vender!
Já
que não ia desfrutar sua hora de almoço com seu novo Preto ( Tática que ela
usava com os namorados. Chamava-os todos de Preto, mesmo se o cara fosse
descendente de alemães), ficou fazendo palavras cruzadas enquanto esperava
Vera, que passou toda manhã e parte da tarde trancada na sua sala.
Quando
isso acontecia, as coisas não andavam legal para a advogada. Podiam ser as
contas, uma em cima da outra, que estivesse infernizando a tranquilidade de
Vera.
-
Não... - pensou Cida, mordendo a ponta da caneta, tentando descobrir o nome do
ator que atuou em "Era uma vez no Oeste" com nove letras. - A doutora
nunca foi tranquila. Pelo contrário! O gênio dela já afastou muitos clientes.
Mas
uma das coisas que aprendeu, nesses anos que trabalhava ali, era ignorar
completamente os rompantes da patroa. "Não, já basta quando ela quer
desabafar. Sempre sobra pra mim. Como agora!"
Vera
saiu da sua sala e disse:
-
Vamos.
Cida
trancou a porta do escritório e levou sua bolsa. O desabafo dava a impressão
que ia ser longo...
No
restaurante, Cida devorava uma macarronada à bolonhesa furiosamente. Vera mal
tocava no seu prato, uma lasanha ao sugo. Bebia lentamente uma taça de vinho
tinto.
Um
pianista tocava uma melodia triste. Dedilhava pelas teclas melancolicamente, talvez
influenciado pelo silêncio naquele restaurante vazio.
Vera
encheu outra taça de vinho e ofereceu à mulata. Com a boca cheia e os lábios
sujos de molho de tomate, Cida negou com um gesto no indicador. Quando engoliu,
comentou:
-
Sou mais da cerveja, doutora - Ela deu mais uma garfada no macarrão e dessa vez
falou com a boca cheia: - Essa macarronada tá que tá! Um dia vou aprender a
fazer igual a esse! Preto vai adorar!
Vera
disse, distraída:
-
Você não me falou uma vez que seu namorado detestava massa?
-
Ih, doutora! - A mulata riu, exibindo dentes brancos e perfeitos. - Esse foi
outro Preto! Agora a história é outra!
Vera
deu um meio sorriso e comentou, enquanto girava a taça com um pouco de vinho
pela haste:
-
Queria ser como você, Cida.
-
Não me diga! A senhora não ia gostar!
-
O que queria dizer é do seu despojamento, da sua alegria na vida.
-
Ah, isso sou mesmo. Comigo não tem mau tempo. Mas a senhora também é uma pessoa
alegre, doutora.
-
Já fui mais. Ultimamente tenho tido alguns probleminhas e isso vem me
chateando...
Havia
uma necessidade em desabafar seus problemas domésticos com Cida, mas Vera freou
a tempo essa compulsão. Uma coisa era reclamar dos poucos clientes que surgiam
no escritório, das dificuldades financeiras de arcar com todos compromissos em
dia. Isso Cida já sabia de cor e salteado. Outra coisa era dizer que Aurélio
não queria nada com a hora do brasil, que todas despesas de casa saíam da
pequena pensão da mãe e do que sobrou da economia que seu pai fez durante toda
sua vida. Como diria a Cida sobre o sujeito que queria comprar o casarão e
agora, seu marido também queria que ela vendesse! Era provável que a secretária
dissesse simplesmente: "Se livra do problema e vá morar perto da
praia!"
Preferiu
ficar quieta, só bebendo o vinho. Cida terminava com seu prato e agora passava
um pedaço de pão no molho que sobrou. Deu uma olhada na lasanha intacta e Vera
disse:
-
Se quiser, pode comer.
-
Doutora, eu não tava de olho!
-
Eu sei - Vera mentiu. - Pode comer.
-
Já tô com a pança cheia, doutora. Mas se a senhora não se importa mesmo, vou
pedir ao garçom pra fazer uma quentinha.
Vera
concordou. Passou o dia inteiro trancada na sua sala, pensando.
Não
se sentia feliz com Aurélio ao seu lado. Mas também não podia escorraçá-lo da
casa, afinal era o pai das crianças. E elas não entenderiam uma súbita
separação.
O
que ela sentia mesmo era pena dele. Um pobre fracassado que nunca deu certo na
vida profissional. Ela sempre esteve ao lado dele o apoiando, aguardando
pacientemente que ele tivesse sucesso na carreira, mas os anos foram passando e
nada do sucesso aparecer.
Viu
Cida pedindo uma garrafa de cerveja. Quase disse que ela ainda estava em
horário de expediente, mas desistiu. Esperava que com a companhia da
secretária, ouvindo seus casos amorosos, a divertisse. Mas a melancolia não a
abandonava.
Cida
perguntou:
-
A senhora quer que eu volte pro escritório?
-
Não, tá liberada. Não teve nenhuma ligação até agora...
-
E a doutora? Se quiser, fico aqui com a senhora.
Vera
sacudiu a cabeça.
-
Não, pode ir. Vou beber essa taça e também estou indo.
Cida
esvaziou a garrafa de cerveja, pegou a quentinha com a lasanha embrulhado em papel
azul e desejou boa tarde.
Sozinha
com a taça pela metade de vinho, Vera pediu outra taça ao garçom. Bebeu o resto
e observou as pessoas no restaurante.
Cada
um sentado, alguns sozinhos e outros acompanhados, bebiam ao som do melancólico
piano. Sentindo-se um pouco alta, teve certeza que foi uma péssima ideia ter
escolhido aquele local para beber vinho. Mas também não podia ir nos lugares
que frequentava para não correr o risco de se encontrar com Aurélio ou algum
conhecido.
O
que a deixou frustrada o dia inteiro foi ver seu marido enfiado na cama
enquanto ela saía para a rua para trabalhar. Aquilo foi a gota d'água que
transbordou o copo.
Ela
se conhecia. Sabia que se não falasse com ele, ia explodir ou ter algum troço
ruim. Ia beber mais uma taça, voltaria para casa e diria tudo que estava
sentindo para ele. E se fosse pra expulsar de casa, faria isso também!
Fez
um gesto para o garçom trazer a comanda da conta quando ouviu ao seu lado:
-
Nunca pensei que ia te encontrar aqui!
Assustada,
olhou para o lado e ficou surpresa.
Era
seu antigo colega de escola, Rodrigo Antunes.
-
Já está indo? Que pena... - lamentou ele. Usava um terno cinza e gravata preta
e tinha uma pasta na mão. - Agora que cheguei...
Vera
sorriu. Acenou ao garçom e cancelou a conta. Ainda pediu mais uma taça de
vinho.
-
Ir embora? Que nada! Tá sozinho?
-
Estou.
-
Me faça companhia então. Sempre é bom relembrarmos o passado - Agora Vera se
sentia melhor. Muito melhor.
Continua...
No próximo capítulo: Fernanda e as crianças de novo e Aurélio vê novamente o sujeito que perambula pela rua do seu bairro.
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Fernanda e as crianças de novo e Aurélio vê novamente o sujeito que perambula pela rua do seu bairro.
Rogerio de C. Ribeiro
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