Abismada
e ao mesmo tempo intrigada, Vera olhava o álbum aberto sobre sua mesa. Vários
retratos em preto e branco de uma moça incrivelmente parecida com sua mãe,
repousavam em um monte. Ela tirara as fotos dos plásticos que a protegiam e
agora olhava bem de perto, procurando uma pista que pudesse decifrar aquele
mistério.
Realmente,
a moça das fotos não tinha quinze anos. Notou um risco ao lado dos lábios,
muita maquiagem e um corpo bem definido. Em um dos retratos, a moça (minha mãe?
Não é possível!!!) desfilava pela praia de Icaraí de maiô, com o antigo
trampolim ao fundo. No verso desse retrato, tinha uma dedicatória:
"Eu
e meu amor nessa tarde maravilhosa em Icaraí. 1962."
Nos
versos de todas fotos tinham mensagens desse tipo: "Eu e o homem da minha
vida no Saco de São Francisco", "Eu e ele no Campo de São
Bento", "Eu e ele em Petrópolis...". Em nenhuma dela tinha uma
assinatura ou revelasse quem era ele.
"Pode
ser uma tia minha..."
Mas
que tia? Desde pequena ouviu sua mãe dizendo que era filha única. Uma vez até
brincou com ela:
-
Acho que é o mal da nossa família - dissera Dona Vitória. Vera se lembra que
tinha 14 anos quando tiveram essa conversa. Estavam na sala principal do
casarão e lá fora a chuva que caía tamborilava pela calha. Seu pai tinha
viajado para o interior do Estado. Foi uma época de muitas viagens do seu pai.
- Minha mãe foi filha única, como a minha avó. E eu. Quando pensei que ia
presentear seu pai com mais filhos, veio só você. Espero que quebre essa
corrente, Vera!
E
Vera quebrou. Teve três filhos maravilhosos. Já que sua mãe foi filha única, a
pessoa da foto não era sua irmã, concluiu. Então quem era? Uma prima bem
próxima?
É
claro que devia ser uma pessoa importante para sua mãe. Guardou o álbum durante
esses anos todos...
"Mas
se era importante, porquê nunca foi mencionada em nenhuma conversa que tivemos
ou veio nos visitar? Nossa casa vivia cheia. Sempre tinha uma reunião política
ou os encontros mensais com a sociedade. Mas nunca apareceu nenhum
parente."
Em
relação a parentes, tinha uma explicação para isso. Sua mãe perdeu os pais
ainda bem jovem, como seu pai, que o único membro familiar mais próximo era uma
tia octogenária que morava em um asilo e que faleceu quando Vera tinha 10 anos.
Dona Vitória sempre tinha uma frase na ponta da língua:
-
Família sou eu, seu pai e você. Mais ninguém.
E
Vera se habituou a isso. Pelo menos, até agora com esse álbum aberto em cima da
mesa.
O
telefone tocou e ela atendeu. Ouviu Cida, no outro lado da extensão:
-
Doutora, a senhora atende o Sr. Rodrigo?
Já?
Não tem nem 24 horas que nos vimos..., pensou Vera. Não estava disposta e nem
com cabeça para ficar conversando com um antigo colega de escola - hoje um
admirável homem que a beijou em pleno centro da cidade! - e ia pedir que Cida
inventasse uma desculpa esfarrapada qualquer, que ela tinha ido ao Fórum,
estava em reunião com um cliente ou que tinha ido ao ginecologista para fazer
um preventivo, mas ao invés disso, respondeu:
-
Pode passar, Cida. E me faça um favor...
-
Sim, doutora.
-
Não ouça a ligação. - Antes que Cida reclamasse, ordenou: - Vamos, passe a
ligação!
Ouviu
um click e a voz grossa no outro lado:
-
Bom dia, Vera!
-
Madrugou? - Ela perguntou, surpresa com a alegria que estava tendo no momento.
-
Nem dormi direito - disse Rodrigo.
-
Tadinho - Vera brincou. - Por quê?
Ela
ouviu a risada dele.
-
Pensei em você a noite toda.
-
Deixa de ser mentiroso, rapaz!
-
Verdade! Pensei como foi gostoso o beijo que te dei.
-
Devia denuncia-lo por assédio! - Agora ela ria.
-
Então vou correr o risco que me denuncie. Quero te ver.
-
Estou ocupada com um problema...
-
Vera, vamos nos encontrar. Talvez possa ajuda-la nesse seu problema.
-
Não... - A palavra soou fraca demais, nem um pouco convincente. E para dizer a
verdade, ela precisava desabafar com alguém sobre aquele álbum misterioso...
-
Vera, não aceito "Não" como uma resposta válida. Estou em Niterói.
Posso ir no seu escritório. Ou prefere me encontrar em outro lugar?
-
Rodrigo, não sei...
-
Chalé - disse ele. - A essa hora está vazio. Te espero lá em meia-hora. Tchau.
- Desligou.
Chalé
era um restaurante e choperia no final da Praia de Icaraí, um dos mais antigos
da cidade. Beber um chope sentado na varanda durante o pôr do sol era um
espetáculo natural dos mais belos.
-
Um chope! Não acredito - disse Vera, pegando alguns retratos da misteriosa moça
em preto e branco e guardando-os na sua bolsa. Deu uma espiada na sua agenda e
viu que não tinha nenhum cliente marcado. Saiu da sua sala e avisou a Cida:
-
Vou atender um cliente e não sei a hora que volto - fechou a porta atrás de si,
ruidosamente.
Cida,
que lia um livro, olhou-a por cima dos óculos de leitura e pensou:
"Sei...
cliente... conta outra, doutora! Em cima de moá não cola!"
******************
Vera
estacionou o Palio na Rua Miguel de Frias, próximo à Reitoria da U.F.F. Trancou
o carro e caminhou para o restaurante que ficava na esquina dessa rua, em
frente à Praça Getúlio Vargas. Àquela hora, o lugar estava vazio. Um dos
atendentes trocava o barril de chope e um garçom, preguiçosamente, arrumava os
cardápios em cima das mesas.
Ela
entrou e viu Rodrigo sentado na varanda, de terno e com sua pasta em cima de
uma cadeira, de costas para ele, provavelmente olhando as pessoas caminhando
pelo calçadão da praia.
Era
uma manhã sem nuvem no céu e fazia um calor agradável. Vera se aproximou e
brincou:
-
O senhor está sozinho?
Rodrigo
levantou-se e respondeu no mesmo tom:
-
Esperava uma pessoa, mas já que não apareceu, agradeço se me fizesse companhia.
Vera
sentou e disse:
-
Acho que estou doida...
-
Por ter vindo? - Rodrigo riu. - Fiquei feliz por ter aceitado meu convite.
-
O que quer comigo? - Vera perguntou. Queria bancar a durona com ele, mas não
conseguia. Ele não era Aurélio!
Rodrigo
não respondeu; acenou para o garçom dos cardápios e pediu dois chopes. Antes
que Vera recusasse a bebida, ele já tinha posto uma tulipa para ela. Ele fez um
brinde:
-
Ao reencontro.
Ela
brindou e bebeu um gole do chope gelado. Não tinha o costume de beber cerveja,
preferia vinho, mas esse chope estava delicioso.
-
Qual deles, no Campo de São Bento ou no Bela Blú?
Rodrigo
pegou a mão esquerda que ela tinha sobre a mesa e respondeu, olhando-a
fixamente:
-
Em todas elas, Vera.
Mais
uma vez ele a beijou de surpresa, e dessa vez, ela aceitou o beijo
naturalmente. Vera sentia-se como se fosse uma adolescente sendo beijada pelo primeiro
namorado.
Acordou
do transe e se afastou. Aquilo era ridículo! Sua fase de adolescente já tinha
passado há muito tempo! Hoje era uma mulher de 37 anos, casada e mãe de três
filhos. Não devia estar ali sentada com um homem que reencontrou há quatro
dias, como se estivesse vivendo um romance...
Ela
disse isso para ele. Rodrigo sorriu e não parecia surpreso.
-
Eu entendo. Mas não resisti ao seu encanto, Vera.
-
Isso é ridículo - Ela tentou ser convincente, mas sua voz fraquejou.
-
O amor não é ridículo. Pelo menos, não acho assim. - Ele esvaziou a tulipa de
chope e pediu mais um ao garçom. - Nunca imaginei que minha paixão por você
voltasse assim, de repente. Mas quando te vi no Campo de São Bento, essa chama
adormecida acordou de repente!
-
Que papo idiota é esse, Rodrigo?
-
Sempre fui apaixonado por você. Uma paixão platônica, mas verdadeira. Você que
nunca olhou pra mim...
"Um
magricela com espinhas na cara... Claro que não vi!"
-
Agora me diga, Vera, com toda sinceridade. Dependendo da sua resposta, posso me
levantar e ir embora ou ficamos juntos... Você é feliz com seu marido?
Vera
se irritou com aquela pergunta. Que disparate!
-
Não te interessa!
Ele
segurou a mão dela com suavidade. O contato dele era delicioso, pensou Vera.
-
Interessa sim. Eu fui casado por vários anos e nunca fui feliz. A única coisa
de bom nesse relacionamento foram meus filhos. Eu não quero mais viver me
iludindo com outras mulheres que nunca vão me acrescentar em nada... Mas você é
diferente, Vera!
-
Olha, me arrependi de ter vindo aqui...
-
Me responda. Prometo que te deixo em paz, mas diga: Você ama seu marido?
Ele
mantinha os olhos grudados nela, e Vera ficou propensa em dizer que amava
Aurélio, mas não conseguiu mentir. Ela se sentia em paz com esse homem, e seria
injusto que não fosse verdadeira também.
-
Não... Não amo.
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
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