- Pela primeira vez vi algo interessante nesse bairro. Mas como falou, crente é foda. Até mais.
Marquinhos acompanhou com o olhar o estranho cambaleando pela rua acima. Bebeu um gole de uma cerveja morna e pensou: "Não confio nesse cara!"
O sujeito de óculos escuros entrou na primeira rua à direita, saindo da vigilância do comerciante. Olhou a rua que subia até o casarão decrépito e sorriu.
Fernanda estava parada, com a sacola de compras na mão, encostada em um poste.
- Fernanda... - disse o sujeito.
A moça retribuiu o sorriso.
- Jayme...
-
Não é justo! Não é justo! Não é... - dizia Anabela, deitada na sua cama.
-
Chega de ficar falando "não é justo!" - replicou Juninho, sentado na
beira da cama. Na outra cama, Dequinha tirava uma soneca.
-
Papai ficou cego, Juninho! Não acredita na gente e ainda nos botou de castigo!
Juninho
concordou. Na hora do almoço, Aurélio foi rigoroso com eles:
-
Comam em silêncio e depois voltem pro quarto de vocês! Nada de videogame,
desenho, computador. Só quero que metam a cara nos deveres de casa!
Juninho
levantou um dedo e Aurélio berrou:
-
Não quero ouvir sua voz, Juninho!
No
outro lado da mesa, Fernanda alimentava Dona Vitória com uma mistura de arroz,
feijão e carne passados em liquidificador, que se transformou em um creme de
aspecto duvidoso. A empregada estava ouvindo a bronca que Aurélio dava nos
filhos e interiormente, sorria, mas vendo-a agora, tinha um aspecto magoado.
Depois
do almoço, Aurélio avisou que ia para o escritório. Fernanda ajeitou Dona
Vitória de frente para televisão e agora escrevia uma lista do que faltava para
pegar no mercado de Marquinhos.
Aurélio
disse, com certa lascívia:
-
Não esqueça... mais tarde no seu quarto...
Fernanda
largou a caneta ao lado da lista sobre a mesa da cozinha e só olhou para ele.
Aurélio tomou aquele olhar como desejo e soltou um sorriso sacana.
Sozinha
na cozinha, Fernanda terminou a lista e saiu a caminho do mercado.
"Hoje
vai ter que se contentar com cinco contra um, palhaço!"
************************
Enquanto
Fernanda descia a rua à esquerda em direção do mercadinho, o Palio de Vera
subia pela rua principal. Estacionou o carro na calçada em frente do portão e
entrou apressada.
Estranhou
o silêncio que reinava a casa. Carregando sua bolsa de couro, ela foi ao quarto
das meninas.
Ficou
surpresa com o que viu. Anabela e Juninho estavam sentados à uma mesinha com
cadernos da escola e Dequinha dormia tranquilamente.
-
Qual é o milagre que não estão aprontando uma? - Perguntou Vera, em pé ao lado
da porta aberta.
Chateada,
Anabela respondeu:
-
Estamos de castigo!
-
E quem botou vocês de castigo? Fernanda?
-
Não... - disse Juninho, amuado. - Papai.
Vera
estranhou.
-
Seu pai está em casa?
-
Não, só veio pro almoço e saiu de novo - Anabela largou o lápis e disse: - Não
é justo, mãe! Papai não acreditou na gente!
-
É!!!!!! - Juninho mostrou os dentes amarelos e cavalares numa careta. - Foi a
empregada!
Vera
riu:
-
Agora entendi... Mais uma vez aprontaram com a menina!
-
Não! Ela que segurou meu braço e mandou que eu fechasse o portão...
Vera
perguntou:
-
Aposto que ela só pediu que vocês fechassem o portão, que vocês deixam sempre
aberto quando chega do colégio!
Juninho
gaguejou:
-
É... mais ou menos... mas ela agarrou meu braço...
-
E cadê o machucado?
Juninho
esticou o braço e não tinha nenhuma marca.
-
Compreendo... seu pai fez o certo. Continuem no castigo, talvez assim coloquem
nessas cabecinhas ocas que mentir é feio.
Ela
nem esperou que os dois se manifestassem, fechou a porta atrás de si e foi ao
quarto da sua mãe.
Dona
Vitória estava sentada na cadeira de rodas e a televisão sintonizada na Globo.
Vera puxou a cadeira e sentou-se na frente dela. Dona Vitória não esboçou
nenhum gesto. Para Dona Vitória, aquela mulher estranha parecia vagamente com
uma das eleitoras que frequentavam a casa na época de campanha.
-
Mãe... - Vera balançou as mãos na frente da velha senhora. Dona Vitória ficou
preocupada com essa doida! Tava dando a impressão que ela queria hipnotiza-la,
ou fazer coisa pior! - Sou eu, Vera!
Vera?
Ora bolas! Tinha cara de burra, mas era bastante esperta! Sua filha Vera tinha
dez anos e essa mulher passou dos trinta há muito tempo!
-
Mãe... "onde Fernanda se enfiou? É só com ela que minha mãe mostra um
resquício de sanidade!" Preste atenção em mim, mãe...
A
estranha doida a chamava de mãe! Que loucura era aquela? Desde quando tinha uma
filha daquele tamanho?
Dona
Vitória desviou os olhos para o lado, na esperança que Ferpa surgisse e tirasse
aquela maluca dali a pontapés. Se ainda tivesse força suficiente nas pernas,
ela mesma faria isso!
Vera
segurou o queixo da sua mãe e trouxe-o para que ficassem cara a cara de novo.
Pegou os retratos da sua bolsa e largou-os no colo. Pegou um deles, o que a
moça estava posando na frente do Cadillac e mostrou:
-
Mãe, quem é essa moça?
Vera
quase esfregava a foto no rosto da mãe. Dona Vitória continuava com os olhos
ausentes:
-
Mãe! - disse Vera, nervosa. Agarrava o retrato e quase o rasgou quando ficou
mexendo de um lado ao outro, para ver se chamava a atenção da velha senhora. -
No início pensei que fosse a senhora. Se fosse, explicaria o motivo de ter
guardado o álbum em uma caixa na garagem. Mas o fato é que essa moça não é a
senhora mais jovem! Impossível! A data da foto diz 1961, e a senhora tinha 15
anos. E essa mulher não tinha quinze anos mesmo!
A
moça do retrato sorria, e se via a sombra de um homem de chapéu.
Houve
um leve fulgor nos olhos de Dona Vitória. Vera percebeu.
-
Então... vamos, mãe... um pouquinho de atenção... lembra? Pra ter guardado o
álbum, deve ser alguém importante...
Dona
Vitória torceu os lábios, como se estivesse com nojo de algo. Ergueu a mão
direita e o dedo indicador tocou a superfície do retrato.
Os
olhos marejaram.
-
Vamos, mãe! - Vera mostrou outras fotos, foi passando uma em uma na frente da
sua mãe como se fossem filmes. - Pra quê escondeu na garagem? Por quê nunca
falou comigo?
Dona
Vitória ergueu novamente a mão direita, só que dessa vez não acariciou a foto
com a ponta do dedo. Com uma força surpreendente, que assustou Vera, Dona
Vitória deu um tapa na mão da sua filha, que largou os retratos, caindo nos
seus pés.
Sua
mão ardia com o tapa. Dona Vitória continuava com a careta naquela boca vazia e
oca, e Vera insistiu, enquanto esfregava as costas da mão:
-
Lembrou? Sei que se lembrou! Quem é, mãe?
-
F-F-Fora daqui, devassa - disse Dona Vitória, dessa vez com com som nítido e
sem erros. - Não quero mais te ver aqui em casa!
Os
olhos da velha senhora, antes ausentes, agora pareciam em chamas.
-
Quem é ela, mãe? - Insistiu Vera.
-
Essa casa não é sua, fora daqui... Gláucia...
Finalmente
surgiu um nome. Vera esperava que sua mãe não voltasse ao seu estado
letárgico, só assim poderia descobrir mais
coisa...
-
Quem é Gláucia, mãe? Quem?
Novamente
a velha senhora levantou a mão direita e agilmente, arrancou a foto da mão de
Vera. O retrato rasgou-se em dois, um pequeno pedaço pairou entre os dedos da
mão de Vera e o restante, Dona Vitória o encarou:
-
Gláucia... fora da minha casa...
-
Quem é Gláucia, mãe?
Dona
Vitória largou o retrato, que caiu lentamente até o chão de sinteco. Vera se
agachou e pegou o pedaço da foto.
-
Força, mãe, a senhora vai conseguir...
Por
mais que mostrasse o retrato mutilado, Dona Vitória voltou ao seu estado
ausente. Por mais que Vera sacudisse o retrato na sua frente, a velha senhora
fixava a parede em frente.
Vera
se levantou e guardou os retratos na bolsa. Saiu do quarto com um pensamento:
"Gláucia."
Pelo
menos tinha um nome.
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
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