- Boa noite, seu Aurélio.
Ela fechou a porta, sem passar a chave. A vontade de Aurélio era abrir a porta e agarra-la, nua, dentro do quartinho. Mas conteve o ímpeto. Aquela moça era ingênua, sofrida... Não ia machuca-la mais ainda.
Precisou tomar uma ducha fria antes de se deitar. Se não fizesse isso, com certeza passaria a noite em claro, pensando na nova empregada.
Aurélio
não escutou o despertador tocando e nem Vera o chamando para se levantar. A
madrugada foi péssima para ele. Por mais que tentasse, não conseguia pregar os olhos depois que viu Fernanda
enrolada na toalha. A imagem das pernas dela úmidas encalacrou na sua mente a
tal ponto que nem o banho frio foi capaz de aliviar sua tensão.
Enquanto
Vera ressonava embrulhada debaixo de um lençol e com um travesseiro enfiado no
meio das pernas, Aurélio vagou pelo casarão feito fantasma. Foi para a varanda
fumar um cigarro atrás do outro enquanto observava ratos passeando em cima do
muro. Uma vez deu um piparote no cigarro pelo filtro e atingiu em cheio uma
ratazana, causando uma leve faísca no pelo cinzento.
Era
refém de uma egoísta e enclausurado como prisioneiro em um mausoléu decrépito.
Se não fosse a novidade que chegou ali, sabia que não ia aguentar por muito
tempo.
Ele
próprio mentia para si mesmo. Se saísse de lá com uma mala de roupas, para onde
iria? Seus pais eram falecidos e o único irmão que tinha não morava em Niterói.
A última vez que teve notícias dele foi quando se mudara para São Paulo com a
segunda esposa. Teria condições psicológicas para se manter sozinho? Claro que
não! Desde que entrou nessa casa, nunca mais teve nenhuma preocupação
financeira. O item "abandonar o lar" podia ser riscado da sua lista
de pretensões.
E
se não ia sair de lá, devia manter sua calma e paciência em aguentar as
bipolaridades da sua mulher. Isso se não tivesse sucesso na sua missão.
Porque
com cem mil reais e mais os cinco por cento da comissão pela venda do casarão,
seria outra coisa. Com dinheiro no bolso podia meter um chute bem dado em Vera
e comprar um quitinete no Centro. Com o resto do dinheiro, abriria sua
própria imobiliária e conseguiria corretores que trabalhassem para ele.
O
céu foi clareando aos poucos e ele continuava na varanda divagando. Pelo menos
tirou a imagem da moça seminua na área de serviços. E conseguiu acalmar sua
adrenalina também.
Por
isso que às oito horas em ponto o despertador berrou e ele não acordou. Só se
deu ao trabalho de entreabrir os olhos quando viu Vera no seu vestido azul e a
bolsa a tiracolo. Ela já tinha se maquiado e segurava as chaves do carro. Ouviu
a voz dela de longe:
-
Vamos, não posso ficar te esperando mais. Se não levantar agora, vai pra
imobiliária a pé!
Aurélio
agarrou o travesseiro e afundou sua cabeça nele.
-
Não estou bem. Estou enjoado, com dor de cabeça. Deve ser fígado.
-
Isso aí tem outro nome, Aurélio! - Resmungou Vera, saindo do quarto. -
Preguicite aguda!
Aurélio
acenou com os dedos e voltou no sono profundo.
****
Na
mesa de café, Fernanda perguntou:
-
Seu Aurélio vem tomar café com a senhora?
Vera
encheu sua xícara de café e disse, secamente:
-
Ele não está passando bem. Vai sair mais tarde.
-
Sim, senhora. - Fernanda estava em pé, ao lado de Vera, a única sentada na
mesa. - Dona Vitória já tomou o mingau da manhã. Vou leva-la para pegar um
pouco de sol no jardim.
-
Não fique muito tempo com ela no sol - disse Vera. - A pele dela é bastante
sensível.
-
A senhora tem toda razão, dona Vera - disse Fernanda, humildemente. - Mas vou
colocar um chapéu que eu vi no quarto dela. Protege bem o rosto.
Vera
esvaziou a xícara e levantou-se.
-
Hoje vou comprar uma bíblia para você.
-
Não precisa, dona Vera...
-
Não vai ser por causa dos meus filhos que você não terá seus momentos de oração.
Sei como isso é importante para você.
-
Orar a Deus é bom para todo mundo.
-
Tá - disse Vera, sem se importar muito com a opinião da empregada. - Pode tirar
a mesa. Já que seu Aurélio está com o fígado chumbado, não acredito que vá
querer comer alguma coisa agora.
Depois
que Vera saiu sem se despedir dela, Fernanda balançou a cabeça e pensou:
"Mulher
intragável!"
Não
tirou nada em cima da mesa. Seu interesse agora era outro. Foi ao quarto de
dona Vitória.
Quando
fechou a porta, caminhou lentamente até a velha senhora, que estava na cadeira
de rodas em frente de uma tevê desligada. Fernanda batia uma mão na outra e
quando ficou de frente à dona Vitória, disse:
-
Bem... Enfim sós! - Ela puxou a cadeira e sentou. - A minha noite foi tão
agradável que acordei de bom humor. Isso é bom para você, coroa. Pode ser que
nem puxe seus cabelos. Quem sabe?
Dona
Vitória sorriu. Aquele mesmo sorriso vazio e oco.
-
Ferrrrpaaaa...
-
Querida - Fernanda pegou um prato cheio que estava em cima da mesinha ao lado. - Tá com fome?
Por quê não comeu o mingau que deixei aqui em cima? Hã? Poxa... menti sem
querer pra tua filha. Falei que a senhora comeu todo mingau. Mas olha só... nem
uma colherada!
Dona
Vitória dava a impressão que devorava o mingau com os olhos e sua língua
dançava sobre os lábios.
-
Grommemmee... eu treerro
Fernanda
pôs a mão atrás da orelha, simulando que não tinha escutado e disse, sorrindo:
-
Acho que não entendi o que falou... sua voz está um pouco rouca...
A
velha senhora ergueu a mão direita com dificuldade e apontou para o prato nas mãos
da empregada.
Fernanda
disse, alegre:
-
Ah! Agora quer comer! Danadinha! Deixei aqui e nem deu bola. Tá muito mal
acostumada, hein? Esse negócio de aviãozinho é coisa para bebê...
Os
olhos da velha imploravam. Fernanda disse:
-
Tá se aproveitando do meu bom humor hoje. Não é todo dia que sou assim.
Generosa.
Fernanda
encheu uma colher de mingau e estendeu na direção da velha.
-
Olha o aviãozinho...
Dona
Vitória abriu a boca faminta.
Quando
encostou a ponta da colher nos lábios da velha, Fernanda largou a haste. Colher
e mingau se esparramaram por cima da camisola da dona Vitória, deixando um
rastro pegajoso de leite e aveia.
-
Que coisa mais feia! - Fernanda pegou o talher do colo da velha. - Aprenda a
comer direito, feito gente, sua retardada!
Dona
Vitória mantinha seus aquosos olhos sobre a colher suja na mão da empregada.
Sua língua passeava pelos lábios, como se estivesse rogando pelo mingau.
Fernanda
pegou o prato e deixou-o sob o nariz da velha. Fernanda riu quando as narinas
da velha alargavam, aspirando o cheiro do mingau.
-
Se está pensando que tenho todo tempo no mundo pra paparicar uma puta velha, tá
redondamente enganada. Deixei o seu prato aqui e você não moveu um dedo para
comê-lo. Ficou aqui olhando pro nada, esperando que eu desse essa bosta que
parece uma caganeira na sua boquinha oca. Olha só. Como deixou que a colher
caísse, vou dar um jeito nessa teimosia.
Ela
virou o prato para baixo e o mingau caiu nos peitos da velha e foram descendo
lentamente pela barriga seca e no colo.
Dona
Vitória tinha um olhar canino sobre a moça. Tentou levantar as mãos enrugadas,
mas o esforço parecia imenso para ela e deixou que caíssem de volta nos braços
da cadeira de roda.
-
E para de me olhar assim, merda! - disse Fernanda enquanto deixava o prato
vazio sobre a mesa. - Tá me deixando nervosa!
Dona
Vitória sorriu, um sorriso banguela e rosnou:
-
Ferrrrrrrpaaa...
Fernanda
tampou o nariz de forma teatral e disse:
-
Tá fedendo a leite azedo misturado a esse cheiro podre de pele velha! Por causa
disso, não vou te levar pro jardim. Vai ficar aqui trancada, com as janelas
fechadas. De castigo!
Fernanda
trancou o fecho da janela e saiu do quarto, trancando por fora. Caminhou para a
cozinha, onde largou o prato sujo de mingau.
Que
a velha apodreça naquele sarcófago.
****************
Aurélio
pulou da cama. Eram onze horas da manhã. Depois do banho, foi para a sala com
uma bermuda listrada e camisa polo. Ficou surpreso quando viu a mesa do café
ainda pronta.
Era
a primeira vez que isso acontecia na casa. Pelas normas radicais de Vera, a
mesa de café tinha que ser desfeita às oito e quarenta da manhã. Se alguém
dormisse além da conta, que se virasse no mercado do Marquinhos para beber um
café.
Fernanda
surgiu, vindo da cozinha. Ela enxugava as mãos no avental do seu uniforme e a
expressão do seu rosto era sorridente.
-
Bom dia, Seu Aurélio. Acabei de passar um café fresquinho para o senhor.
Ainda
atordoado, Aurélio puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. Fernanda se aproximou
ao seu lado, trazendo um bule na mão. Em silêncio, Aurélio virou sua xícara
para cima e a moça despejou café nele. O aroma inebriou o corretor. Mas não era
propriamente o cheiro do café que o deliciava. Era o cheiro da empregada, em pé
junto ao seu ombro. Dava para sentir o leve roçar do quadril dela em cima do
seu braço, que estava sobre a mesa.
-
Espero que o café não esteja muito forte - Fernanda disse, ainda parada no lado
do patrão.
-
O café está uma delícia! - Aurélio respondeu. Seu braço ainda encostava no
quadril da moça e ele arriscou dar uma olhada nas coxas com pelinhos dourados
dela. Quase se engasgou com o café. Tossiu.
-
Seu Aurélio! - disse Fernanda, preocupada. - Cuidado! O café tá muito quente.
Aurélio
gesticulou mostrando que estava tudo bem .
-
Fernanda - Ele perguntou. - Dona Vera autorizou isso? - Ele mostrou a mesa de
café, intacta, com as mãos.
-
Por quê? O senhor não estava dormindo?
-
Sim... Mas nessa casa existem algumas regras.
-
Ainda não decorei todas elas, senhor. Só sei que quando o homem da casa está
dormindo, tem todo direito do seu café quando acorda.
O
termo "homem da casa" deixou-o lisonjeado.
"Essa
menina é de uma pureza fora do comum... ", pensou.
Fernanda
se afastou e Aurélio sentiu falta do calor que vinha do quadril para seu braço.
-
Eu sei que você é nova aqui, e realmente, guardar todas regras na cabeça pode
levar tempo. Mas te agradeço por ter pensado em mim. Mas se Vera mandar que
você faça determinada coisa, faça sem questionar nada.
Fernanda
tinha as mãos juntas sobre o avental. Ela concordou:
-
Sim, claro. Mas mesmo que o senhor acorde tarde, saiba que sempre vai ter um
café fresquinho te esperando.
Antes
que ele dissesse algo, ela saiu da sala de jantar.
Enternecido
com o pequeno gesto da moça, Aurélio disse para si mesmo:
-
Tão linda e tão inocente...
Ainda
sentia o calor dela no braço. E instintivamente, cheirou-o profundamente.
Deliciou-se com o leve perfume dela.
Continua...
No próximo capítulo: Vera almoça com sua secretária e reencontra alguém
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
No próximo capítulo: Vera almoça com sua secretária e reencontra alguém
Rogerio de C. Ribeiro
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