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terça-feira, 2 de setembro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 23

No capítulo anterior: Fernanda baixou os olhos e deu um meio sorriso. Ela abriu a porta do seu quarto e disse:
- Boa noite, seu Aurélio.
Ela fechou a porta, sem passar a chave. A vontade de Aurélio era abrir a porta e agarra-la, nua, dentro do quartinho. Mas conteve o ímpeto. Aquela moça era ingênua, sofrida... Não ia machuca-la mais ainda.
Precisou tomar uma ducha fria antes de se deitar. Se não fizesse isso, com certeza passaria a noite em claro, pensando na nova empregada.


Aurélio não escutou o despertador tocando e nem Vera o chamando para se levantar. A madrugada foi péssima para ele. Por mais que tentasse, não conseguia pregar os olhos depois que viu Fernanda enrolada na toalha. A imagem das pernas dela úmidas encalacrou na sua mente a tal ponto que nem o banho frio foi capaz de aliviar sua tensão.
Enquanto Vera ressonava embrulhada debaixo de um lençol e com um travesseiro enfiado no meio das pernas, Aurélio vagou pelo casarão feito fantasma. Foi para a varanda fumar um cigarro atrás do outro enquanto observava ratos passeando em cima do muro. Uma vez deu um piparote no cigarro pelo filtro e atingiu em cheio uma ratazana, causando uma leve faísca no pelo cinzento.
Era refém de uma egoísta e enclausurado como prisioneiro em um mausoléu decrépito. Se não fosse a novidade que chegou ali, sabia que não ia aguentar por muito tempo.
Ele próprio mentia para si mesmo. Se saísse de lá com uma mala de roupas, para onde iria? Seus pais eram falecidos e o único irmão que tinha não morava em Niterói. A última vez que teve notícias dele foi quando se mudara para São Paulo com a segunda esposa. Teria condições psicológicas para se manter sozinho? Claro que não! Desde que entrou nessa casa, nunca mais teve nenhuma preocupação financeira. O item "abandonar o lar" podia ser riscado da sua lista de pretensões.
E se não ia sair de lá, devia manter sua calma e paciência em aguentar as bipolaridades da sua mulher. Isso se não tivesse sucesso na sua missão.
Porque com cem mil reais e mais os cinco por cento da comissão pela venda do casarão, seria outra coisa. Com dinheiro no bolso podia meter um chute bem dado em Vera e comprar um quitinete no Centro. Com o resto do dinheiro, abriria sua própria imobiliária e conseguiria corretores que trabalhassem para ele.
O céu foi clareando aos poucos e ele continuava na varanda divagando. Pelo menos tirou a imagem da moça seminua na área de serviços. E conseguiu acalmar sua adrenalina também.
Por isso que às oito horas em ponto o despertador berrou e ele não acordou. Só se deu ao trabalho de entreabrir os olhos quando viu Vera no seu vestido azul e a bolsa a tiracolo. Ela já tinha se maquiado e segurava as chaves do carro. Ouviu a voz dela de longe:
- Vamos, não posso ficar te esperando mais. Se não levantar agora, vai pra imobiliária a pé!
Aurélio agarrou o travesseiro e afundou sua cabeça nele.
- Não estou bem. Estou enjoado, com dor de cabeça. Deve ser fígado.
- Isso aí tem outro nome, Aurélio! - Resmungou Vera, saindo do quarto. - Preguicite aguda!
Aurélio acenou com os dedos e voltou no sono profundo.
                                     ****
Na mesa de café, Fernanda perguntou:
- Seu Aurélio vem tomar café com a senhora?
Vera encheu sua xícara de café e disse, secamente:
- Ele não está passando bem. Vai sair mais tarde.
- Sim, senhora. - Fernanda estava em pé, ao lado de Vera, a única sentada na mesa. - Dona Vitória já tomou o mingau da manhã. Vou leva-la para pegar um pouco de sol no jardim.
- Não fique muito tempo com ela no sol - disse Vera. - A pele dela é bastante sensível.
- A senhora tem toda razão, dona Vera - disse Fernanda, humildemente. - Mas vou colocar um chapéu que eu vi no quarto dela. Protege bem o rosto.
Vera esvaziou a xícara e levantou-se.
- Hoje vou comprar uma bíblia para você.
- Não precisa, dona Vera...
- Não vai ser por causa dos meus filhos que você não terá seus momentos de oração. Sei como isso é importante para você.
- Orar a Deus é bom para todo mundo.
- Tá - disse Vera, sem se importar muito com a opinião da empregada. - Pode tirar a mesa. Já que seu Aurélio está com o fígado chumbado, não acredito que vá querer comer alguma coisa agora.
Depois que Vera saiu sem se despedir dela, Fernanda balançou a cabeça e pensou:
"Mulher intragável!"
Não tirou nada em cima da mesa. Seu interesse agora era outro. Foi ao quarto de dona Vitória.
Quando fechou a porta, caminhou lentamente até a velha senhora, que estava na cadeira de rodas em frente de uma tevê desligada. Fernanda batia uma mão na outra e quando ficou de frente à dona Vitória, disse:
- Bem... Enfim sós! - Ela puxou a cadeira e sentou. - A minha noite foi tão agradável que acordei de bom humor. Isso é bom para você, coroa. Pode ser que nem puxe seus cabelos. Quem sabe?
Dona Vitória sorriu. Aquele mesmo sorriso vazio e oco.
- Ferrrrpaaaa...
- Querida - Fernanda pegou um prato cheio que estava em cima da mesinha ao lado. - Tá com fome? Por quê não comeu o mingau que deixei aqui em cima? Hã? Poxa... menti sem querer pra tua filha. Falei que a senhora comeu todo mingau. Mas olha só... nem uma colherada!
Dona Vitória dava a impressão que devorava o mingau com os olhos e sua língua dançava sobre os lábios.
- Grommemmee... eu treerro
Fernanda pôs a mão atrás da orelha, simulando que não tinha escutado e disse, sorrindo:
- Acho que não entendi o que falou... sua voz está um pouco rouca...
A velha senhora ergueu a mão direita com dificuldade e apontou para o prato nas mãos da empregada.
Fernanda disse, alegre:
- Ah! Agora quer comer! Danadinha! Deixei aqui e nem deu bola. Tá muito mal acostumada, hein? Esse negócio de aviãozinho é coisa para bebê...
Os olhos da velha imploravam. Fernanda disse:
- Tá se aproveitando do meu bom humor hoje. Não é todo dia que sou assim. Generosa.
Fernanda encheu uma colher de mingau e estendeu na direção da velha.
- Olha o aviãozinho...
Dona Vitória abriu a boca faminta.
Quando encostou a ponta da colher nos lábios da velha, Fernanda largou a haste. Colher e mingau se esparramaram por cima da camisola da dona Vitória, deixando um rastro pegajoso de leite e aveia.
- Que coisa mais feia! - Fernanda pegou o talher do colo da velha. - Aprenda a comer direito, feito gente, sua retardada!
Dona Vitória mantinha seus aquosos olhos sobre a colher suja na mão da empregada. Sua língua passeava pelos lábios, como se estivesse rogando pelo mingau.
Fernanda pegou o prato e deixou-o sob o nariz da velha. Fernanda riu quando as narinas da velha alargavam, aspirando o cheiro do mingau.
- Se está pensando que tenho todo tempo no mundo pra paparicar uma puta velha, tá redondamente enganada. Deixei o seu prato aqui e você não moveu um dedo para comê-lo. Ficou aqui olhando pro nada, esperando que eu desse essa bosta que parece uma caganeira na sua boquinha oca. Olha só. Como deixou que a colher caísse, vou dar um jeito nessa teimosia.
Ela virou o prato para baixo e o mingau caiu nos peitos da velha e foram descendo lentamente pela barriga seca e no colo.
Dona Vitória tinha um olhar canino sobre a moça. Tentou levantar as mãos enrugadas, mas o esforço parecia imenso para ela e deixou que caíssem de volta nos braços da cadeira de roda.
- E para de me olhar assim, merda! - disse Fernanda enquanto deixava o prato vazio sobre a mesa. - Tá me deixando nervosa!
Dona Vitória sorriu, um sorriso banguela e rosnou:
- Ferrrrrrrpaaa...
Fernanda tampou o nariz de forma teatral e disse:
- Tá fedendo a leite azedo misturado a esse cheiro podre de pele velha! Por causa disso, não vou te levar pro jardim. Vai ficar aqui trancada, com as janelas fechadas. De castigo!
Fernanda trancou o fecho da janela e saiu do quarto, trancando por fora. Caminhou para a cozinha, onde largou o prato sujo de mingau.
Que a velha apodreça naquele sarcófago.
                             ****************
Aurélio pulou da cama. Eram onze horas da manhã. Depois do banho, foi para a sala com uma bermuda listrada e camisa polo. Ficou surpreso quando viu a mesa do café ainda pronta.
Era a primeira vez que isso acontecia na casa. Pelas normas radicais de Vera, a mesa de café tinha que ser desfeita às oito e quarenta da manhã. Se alguém dormisse além da conta, que se virasse no mercado do Marquinhos para beber um café.
Fernanda surgiu, vindo da cozinha. Ela enxugava as mãos no avental do seu uniforme e a expressão do seu rosto era sorridente.
- Bom dia, Seu Aurélio. Acabei de passar um café fresquinho para o senhor.
Ainda atordoado, Aurélio puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. Fernanda se aproximou ao seu lado, trazendo um bule na mão. Em silêncio, Aurélio virou sua xícara para cima e a moça despejou café nele. O aroma inebriou o corretor. Mas não era propriamente o cheiro do café que o deliciava. Era o cheiro da empregada, em pé junto ao seu ombro. Dava para sentir o leve roçar do quadril dela em cima do seu braço, que estava sobre a mesa.
- Espero que o café não esteja muito forte - Fernanda disse, ainda parada no lado do patrão.
- O café está uma delícia! - Aurélio respondeu. Seu braço ainda encostava no quadril da moça e ele arriscou dar uma olhada nas coxas com pelinhos dourados dela. Quase se engasgou com o café. Tossiu.
- Seu Aurélio! - disse Fernanda, preocupada. - Cuidado! O café tá muito quente.
Aurélio gesticulou mostrando que estava tudo bem .
- Fernanda - Ele perguntou. - Dona Vera autorizou isso? - Ele mostrou a mesa de café, intacta, com as mãos.
- Por quê? O senhor não estava dormindo?
- Sim... Mas nessa casa existem algumas regras.
- Ainda não decorei todas elas, senhor. Só sei que quando o homem da casa está dormindo, tem todo direito do seu café quando acorda.
O termo "homem da casa" deixou-o lisonjeado.
"Essa menina é de uma pureza fora do comum... ", pensou.
Fernanda se afastou e Aurélio sentiu falta do calor que vinha do quadril para seu braço.
- Eu sei que você é nova aqui, e realmente, guardar todas regras na cabeça pode levar tempo. Mas te agradeço por ter pensado em mim. Mas se Vera mandar que você faça determinada coisa, faça sem questionar nada.
Fernanda tinha as mãos juntas sobre o avental. Ela concordou:
- Sim, claro. Mas mesmo que o senhor acorde tarde, saiba que sempre vai ter um café fresquinho te esperando.
Antes que ele dissesse algo, ela saiu da sala de jantar.
Enternecido com o pequeno gesto da moça, Aurélio disse para si mesmo:
- Tão linda e tão inocente...
Ainda sentia o calor dela no braço. E instintivamente, cheirou-o profundamente. Deliciou-se com o leve perfume dela.

Continua...

No próximo capítulo: Vera almoça com sua secretária e reencontra alguém

Rogerio de C. Ribeiro

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