Vera
se sentia estranhamente ociosa nessa manhã. Tirando o fim de semana que ficava
em casa, o restante da semana era controlado pelo seu ritmo rotineiro de
acordar cedo, tomar café no mesmo horário de sempre, ir para o escritório - tivesse
cliente, audiência ou absolutamente nada - e voltar para casa com Aurélio de
carona. Mas essa semana muitas coisas aconteceram, novidades, surpresas, que
quebraram sua rotina.
Desde
quando ia imaginar que ficaria atraída por um homem que não fosse seu marido?
Desde que reencontrou o velho colega de escola, as coisas deram uma reviravolta
nos seus hábitos.
Vera
terminou com seu café e viu que já passava de nove e meia da manhã. Quando foi
a última vez que fizera isso? Nem se lembrava mais, talvez quando ainda era uma
menininha...
Sozinha
na mesa de jantar, ficou olhando para a cadeira da cabeceira vazia, o lugar que
seu pai sentava e depois de sua morte permaneceu vaga, mas sempre com uma
xícara, um prato, talheres, como se ele ainda estivesse ali com ela. Sua
ausência doía, a saudade era imensa.
"Pai,
precisava tanto que estivesse aqui comigo para me aconselhar... e me dizer quem
é essa tal de Gláucia..."
Com
certeza seu pai sabia. Será que ele falaria alguma coisa se ainda fosse vivo?
Nunca mencionou nada antes, nem ele e nem sua mãe...
Sua
esperança agora era Belinda. Talvez soubesse de algo. Ela trabalhou com eles
durante trinta anos. Impossível que não soubesse de algumas particularidades da
sua mãe...
-
Belinda... Prepare-se... - Vera murmurou enquanto esvaziava a xícara de café.
***************
Belinda
estava sentada em um banco de madeira no corredor do hospital estadual Azevedo
Lima. Junto com ela, centenas de pessoas se amontoavam desde cedo. Belinda
ouviu uma criança no colo da mãe chorando, com o braço inchado. Na fileira da
frente um homem apoiava o queixo com a mão direita; o lado esquerdo da sua face
estava inchado e roxo. Uma moça batia no balcão da recepção, gritando do
descaso em relação ao seu pai que estava deitado no banco.
-
Meu pai precisa de um cardiologista, moça! Ele tá passando mal! - A
recepcionista nem olhava para ela. Anotava uma ficha e pedia os documentos do
pobre coitado que respirava com dificuldade. - Esqueci de pegar os documentos,
merda! Ele precisa de um atendimento urgente!!!! A droga do documento pego
depois...
-
Desculpe, é a regra... sem documento...
-
Porra!!!! Meu pai tá morrendo e não pode ser atendido por causa de uma merda de
RG????
No
seu canto, Belinda conferiu na sua bolsa se não tinha esquecido sua identidade.
Encontrou na sua carteira. Ficou com pena daquele homem. Mas não era só ele que
precisava de um médico. Muitos que ali se encontravam chegaram de madrugada
como ela.
"Mas
o caso dele é uma emergência. O meu, ainda bem, é uma consulta..."
Três
seguranças parrudos se aproximaram da moça e a arrastaram do balcão, agarrando
seus braços. Ela se debatia e pedia socorro, mas ninguém esboçou nenhuma
reação.
"Todo
mundo tá na mesma situação, mocinha. Não é só seu pai que precisa de
ajuda..."
O
homem deitado no banco comprido massageava o peito e seu rosto tinha um tom
acinzentado. Belinda virou o rosto. Era muito sofrimento junto, compartilhando
o mesmo lugar.
Ela
ouviu uma enfermeira chamando seu nome e se levantou apressada. Passou pelo
homem cinzento deitado e se aproximou da porta do consultório que permanecia
entreaberta. A enfermeira, uma mulher baixa, troncuda, com uma imensa verruga
preta e cabeluda sobre o lábio superior, disse numa voz rouca e enfadonha:
-
Dr. Gilberto não pode atende-la hoje. Acabou de receber uma chamada importante
e teve que sair. Peço que se dirija ao balcão para remarcar a consulta.
Belinda
não sabia se era o calor que fazia ali dentro ou a frustração de perder horas
sentada no banco presenciando e ouvindo gemidos, ferimentos, dores, mas o fato
que sentiu palpitações no peito e uma leve tontura rodando dentro da sua
cabeça. Esperançosa, ainda perguntou:
-
Será que consigo marcar a consulta para amanhã?
A
enfermeira tocou com a ponta do dedo indicador na verruga e torceu a boca,
mostrando uma dentadura amarelada:
-
É mais provável que consiga pro mês que vem.
Belinda
não conseguiu segurar as lágrimas que desceram pelas faces. Afastou-se da
enfermeira e se apoiou na parede. Pessoas iam e vinham, pessoas choravam,
gritavam, e ela permanecia ali, ancorada pelos ombros na parede fria,
respirando com dificuldade.
Quando
sentiu-se melhor, foi ao balcão para remarcar a consulta.
Fora
do hospital, ligou para sua antiga patroa:
-
Dona Vera, sou eu. Acabei de sair do hospital... É, não tive sorte...
-
Estou te esperando, Belinda - disse Vera, ansiosa, no outro lado da linha.
-
Por isso te liguei, dona Vera. Não estou me sentindo muito bem...
-
Isso é impressão sua, da sua cabeça - replicou Vera. - Depois que chegar aqui,
vai ver que tudo é imaginação sua...
-
Não tem nenhuma imaginação!
-
Ah, Belinda! Sobe logo, preciso falar contigo.
-
A senhora não vem me buscar de carro?
Houve
um silêncio pesado. Depois Belinda ouviu Vera, irritada:
-
O carro está guardado na garagem e estou preocupada com os pneus dele... Larga
de frescura e sobe a rua. É bom pro coração - terminou ela e desligou o
celular.
Conformada,
Belinda iniciou a subida na rua. Nem sabia porquê pedira carona para sua antiga
patroa. Nos trinta anos que serviu à família Paranhos, nunca - mas NUNCA mesmo,
entrou em um dos carros que Vera já tivera. Lembrou-se de uma frase que ouvira
entre dona Vitória e a filha:
"
Lugar de empregado é da cozinha pra área de serviços. Nunca tenha pena das suas
dificuldades. Empregada adora chorar miséria. Se não formos duros com eles,
caímos na sua lábia e acabamos nos seus problemas. Os laços entre patroa e
empregada se restringe apenas ao serviço. Só isso. E se uma empregada não
conseguir ser discreta, o negócio é chutar-lhe pra fora..."
Essa
conversa tinha sido há mais de vinte anos... Dona Vitória mudou bastante depois
daquele papo, mas Vera aprendeu direitinho...
A
subida era desgastante. Com a respiração ofegante e o coração disparando,
Belinda só fazia isso em consideração à velha senhora. Para ela, devia muito...
muito...
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
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