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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

NADA É O QUE PARECE CAPÍTULO 44

No capítulo anterior:
Vera se sentia estranhamente ociosa nessa manhã. Tirando o fim de semana que ficava em casa, o restante da semana era controlado pelo seu ritmo rotineiro de acordar cedo, tomar café no mesmo horário de sempre, ir para o escritório - tivesse cliente, audiência ou absolutamente nada - e voltar para casa com Aurélio de carona. Mas essa semana muitas coisas aconteceram, novidades, surpresas, que quebraram sua rotina.
Desde quando ia imaginar que ficaria atraída por um homem que não fosse seu marido? Desde que reencontrou o velho colega de escola, as coisas deram uma reviravolta nos seus hábitos.
Vera terminou com seu café e viu que já passava de nove e meia da manhã. Quando foi a última vez que fizera isso? Nem se lembrava mais, talvez quando ainda era uma menininha...
Sozinha na mesa de jantar, ficou olhando para a cadeira da cabeceira vazia, o lugar que seu pai sentava e depois de sua morte permaneceu vaga, mas sempre com uma xícara, um prato, talheres, como se ele ainda estivesse ali com ela. Sua ausência doía, a saudade era imensa.
"Pai, precisava tanto que estivesse aqui comigo para me aconselhar... e me dizer quem é essa tal de Gláucia..."
Com certeza seu pai sabia. Será que ele falaria alguma coisa se ainda fosse vivo? Nunca mencionou nada antes, nem ele e nem sua mãe...
Sua esperança agora era Belinda. Talvez soubesse de algo. Ela trabalhou com eles durante trinta anos. Impossível que não soubesse de algumas particularidades da sua mãe...
- Belinda... Prepare-se... - Vera murmurou enquanto esvaziava a xícara de café.
                          ***************
Belinda estava sentada em um banco de madeira no corredor do hospital estadual Azevedo Lima. Junto com ela, centenas de pessoas se amontoavam desde cedo. Belinda ouviu uma criança no colo da mãe chorando, com o braço inchado. Na fileira da frente um homem apoiava o queixo com a mão direita; o lado esquerdo da sua face estava inchado e roxo. Uma moça batia no balcão da recepção, gritando do descaso em relação ao seu pai que estava deitado no banco.
- Meu pai precisa de um cardiologista, moça! Ele tá passando mal! - A recepcionista nem olhava para ela. Anotava uma ficha e pedia os documentos do pobre coitado que respirava com dificuldade. - Esqueci de pegar os documentos, merda! Ele precisa de um atendimento urgente!!!! A droga do documento pego depois...
- Desculpe, é a regra... sem documento...
- Porra!!!! Meu pai tá morrendo e não pode ser atendido por causa de uma merda de RG????
No seu canto, Belinda conferiu na sua bolsa se não tinha esquecido sua identidade. Encontrou na sua carteira. Ficou com pena daquele homem. Mas não era só ele que precisava de um médico. Muitos que ali se encontravam chegaram de madrugada como ela.
"Mas o caso dele é uma emergência. O meu, ainda bem, é uma consulta..."
Três seguranças parrudos se aproximaram da moça e a arrastaram do balcão, agarrando seus braços. Ela se debatia e pedia socorro, mas ninguém esboçou nenhuma reação.
"Todo mundo tá na mesma situação, mocinha. Não é só seu pai que precisa de ajuda..."
O homem deitado no banco comprido massageava o peito e seu rosto tinha um tom acinzentado. Belinda virou o rosto. Era muito sofrimento junto, compartilhando o mesmo lugar.
Ela ouviu uma enfermeira chamando seu nome e se levantou apressada. Passou pelo homem cinzento deitado e se aproximou da porta do consultório que permanecia entreaberta. A enfermeira, uma mulher baixa, troncuda, com uma imensa verruga preta e cabeluda sobre o lábio superior, disse numa voz rouca e enfadonha:
- Dr. Gilberto não pode atende-la hoje. Acabou de receber uma chamada importante e teve que sair. Peço que se dirija ao balcão para remarcar a consulta.
Belinda não sabia se era o calor que fazia ali dentro ou a frustração de perder horas sentada no banco presenciando e ouvindo gemidos, ferimentos, dores, mas o fato que sentiu palpitações no peito e uma leve tontura rodando dentro da sua cabeça. Esperançosa, ainda perguntou:
- Será que consigo marcar a consulta para amanhã?
A enfermeira tocou com a ponta do dedo indicador na verruga e torceu a boca, mostrando uma dentadura amarelada:
- É mais provável que consiga pro mês que vem.
Belinda não conseguiu segurar as lágrimas que desceram pelas faces. Afastou-se da enfermeira e se apoiou na parede. Pessoas iam e vinham, pessoas choravam, gritavam, e ela permanecia ali, ancorada pelos ombros na parede fria, respirando com dificuldade.
Quando sentiu-se melhor, foi ao balcão para remarcar a consulta.
Fora do hospital, ligou para sua antiga patroa:
- Dona Vera, sou eu. Acabei de sair do hospital... É, não tive sorte...
- Estou te esperando, Belinda - disse Vera, ansiosa, no outro lado da linha.
- Por isso te liguei, dona Vera. Não estou me sentindo muito bem...
- Isso é impressão sua, da sua cabeça - replicou Vera. - Depois que chegar aqui, vai ver que tudo é imaginação sua...
- Não tem nenhuma imaginação!
- Ah, Belinda! Sobe logo, preciso falar contigo.
- A senhora não vem me buscar de carro?
Houve um silêncio pesado. Depois Belinda ouviu Vera, irritada:
- O carro está guardado na garagem e estou preocupada com os pneus dele... Larga de frescura e sobe a rua. É bom pro coração - terminou ela e desligou o celular.
Conformada, Belinda iniciou a subida na rua. Nem sabia porquê pedira carona para sua antiga patroa. Nos trinta anos que serviu à família Paranhos, nunca - mas NUNCA mesmo, entrou em um dos carros que Vera já tivera. Lembrou-se de uma frase que ouvira entre dona Vitória e a filha:
" Lugar de empregado é da cozinha pra área de serviços. Nunca tenha pena das suas dificuldades. Empregada adora chorar miséria. Se não formos duros com eles, caímos na sua lábia e acabamos nos seus problemas. Os laços entre patroa e empregada se restringe apenas ao serviço. Só isso. E se uma empregada não conseguir ser discreta, o negócio é chutar-lhe pra fora..."
Essa conversa tinha sido há mais de vinte anos... Dona Vitória mudou bastante depois daquele papo, mas Vera aprendeu direitinho...
A subida era desgastante. Com a respiração ofegante e o coração disparando, Belinda só fazia isso em consideração à velha senhora. Para ela, devia muito... muito...

Continua...

Rogerio de C. Ribeiro

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