- Vai ser logo, pode deixar.
Dilza embolsou a nota e saiu em disparada. Preocupado, Jayme se aproximou de uma mesa com o mulato e os dois outros sujeitos, puxou uma cadeira e disse:
- Valendo cerveja.
- Demorô - disse o mulato, pegando o baralho.
Precisava relaxar um pouco. Umas partidas de "sueca" ia distraí-lo, mas não conseguia tirar da cabeça a tia de Fernanda. Aquela mulher, por causa da bebida, era perigosa demais.
Ia falar com Fernanda primeiro. O que ela falasse, ia fazer.
Só não podia mais correr o risco de perder tudo por causa de uma puta cachaceira.
A
expectativa era tão gigantesca que Aurélio mal via as horas passando. Passou a
tarde inteira enfurnado no escritório. Rezende, o corretor barrigudo e de
grandes bigodes, trovejava algo sobre futebol ou voleibol, mas ele nem prestou
atenção nas palavras do outro. Aurélio pegou uma agenda antiga e folheava as
páginas aleatoriamente, fingindo que procurava algum cliente. O que tinha na
sua cabeça era o beijo que deu na nova empregada, o gosto da sua boca, a maciez
dos fios dos seus cabelos, os bicos duros dos seios...
"Sou
um cara de sorte!", Ele pensou enquanto virava as páginas da agenda de
2011. "O lado positivo de ser o marido da patroa é que você também assume
o posto de patrão. O que mais atrai nas subordinadas é a imagem do homem que
paga seu salário. Quando me diziam que as empregadinhas ficam molhadinhas quando
servem o cafezinho, eu duvidava. Mas não é que era "vero"?"
-
Ganhou na mega sena? - Ele ouviu Rezende falando da sua mesa.
Ergueu
os olhos da agenda, piscou duas vezes e respondeu, ainda com um leve sorriso
sombreando seu rosto:
-
Quase, Rezende, quase!
-
Aposto que é uma venda - sugeriu Viriato. Ele tinha um jornal aberto em cima da
mesa na página policial. - Se for isso mesmo, já era hora, amigo!
Os
dois estavam redondamente enganados, mas Aurélio não ia dar nenhuma pista da
sua euforia. Eles que imaginassem qualquer coisa. Aquele era um segredo dele,
só dele.
Essa
noite ia ser maravilhosa!
******************
A
porta do quarto das meninas abriu e Fernanda entrou. Viu Anabela e Juninho
sentados na pequena mesa enquanto faziam seus deveres de casa e Dequinha estava
sentada na cama com uma boneca caolha.
Anabela
assustou-se com a presença da empregada e Juninho enfiou mais ainda a cara no
seu caderno.
-
Que bonito - disse Fernanda, fechando a porta. Ela ficou parada de braços
cruzados, como uma vigilante tomando conta da porta giratória de um banco. -
Estudem bastante. Seus pais vão adorar em terem dois filhos inteligentes!
-
O-O que... que... quer aqui no meu quarto? - Perguntou Anabela, com voz
trêmula.
Fernanda
caminhou na direção da menina, que encolheu-se na cadeirinha que sentava, e passou
por ela sem responder. Sentou na cama de Dequinha e afagou os cabelos da
caçula, que retribuiu o carinho com um largo sorriso.
-
Por enquanto, não quero nada com vocês - disse Fernanda de costas para Anabela
e Juninho. Ela mantinha os olhos fixos em Dequinha. - Quero bater um papo
gostoso com minha amiguinha...
Fernanda
pegou a boneca caolha das mãos da criança e levantou-a na sua frente. Era uma
aberração de pano, mas elogiou:
-
Que linda, Andréia! Como ela se chama?
-
Suzana - respondeu Dequinha, sentada com as pernas cruzadas.
Fernanda
balançou a boneca e murmurou:
-
Suzana... - repetiu o nome, saboreando cada letra. - Que nome bonito!
-
Ela foi da minha mãe! - disse Dequinha. Estava feliz que Fernanda estivesse ali
com ela. Pelo menos podia conversar com alguém, já que seus irmãos estavam de
mal com ela!
Da
mesinha, Anabela e Juninho fingiam que estudavam, mas vigiavam a empregada.
Fernanda
devolveu a boneca e perguntou:
-
Seu pai já botou uma lâmpada pra você?
Dequinha
fez um beicinho, contrariada.
-
Não! Ontem dormi no escuro. Eu detesto dormir no escuro!
-
Eu sei, você me falou. É horrível mesmo! - disse Fernanda, mostrando
solidariedade com a criança. Anabela e Juninho se entreolhavam, intrigados com
tanta simpatia da bruxa. - Fui no Marquinhos e perguntei se tinha a lâmpada
azul que você gosta. Mas ele disse que não tinha...
Dequinha
comentou:
-
Essa não!
-
Bem... eu... - Fernanda virou o rosto rápido e os dois irmãos maiores baixaram
as cabeças nos cadernos. Voltou sua atenção a Dequinha e disse: - Vem cá.
Dequinha
se aproximou e Fernanda sussurrou algo no ouvido da menina, que abriu um largo
sorriso. Fernanda se levantou e disse:
-
Vou preparar a janta. Depois a gente conversa mais.
-
Tá legal! - disse Dequinha. Seu rosto parecia iluminado.
Depois
que Fernanda saiu do quarto, Juninho perguntou:
-
É!!!! O que a maluca falou no seu ouvido?
Dequinha
voltou para a cabeceira da cama segurando a boneca em cima das suas pernas e
não respondeu. Anabela fez a mesma pergunta, sem sucesso.
O
fato que a menina de quatro anos sorria. Pelo menos uma pessoa na casa gostava
dela!
********************
Fernanda
acabou de vestir Dona Vitória e a acomodou na cadeira de rodas para o jantar. A
velha senhora mantinha sua atenção toda sobre a moça como um dedicado cachorro
vira-lata agradecido por um prato de comida.
-
Ao invés de ficar aí me admirando, podia me falar onde está a chave daquela
caixa de ferro - disse Fernanda, sentada na cadeira em frente da velha senhora.
-
Ferrrrpaaaaaaa...
-
Lá vem você de novo com isso ...
-
Eu... grostcho...Ferrrpaaa...
-
Grostcha o cacete - Fernanda pulou da cadeira e saiu do campo de visão da
velha. - Fica aí olhando a parede como uma boa menina débil mental. Preciso ver
uma coisinha...
Fernanda
colou a orelha na porta e ficou satisfeita que não ouviu nenhum som no
corredor. Foi ao armário, pegou o baú de joias e pegou um anel de esmeralda.
"Vamos
ver quanto vale."
Guardou
o anel no bolso do avental e devolveu o baú para o seu lugar. Depois conduziu
Dona Vitória à sala de jantar.
*********************
Como
sempre, o jantar no casarão era como um ritual, com cada um sentado em seu devido lugar
e na cabeceira, um prato virado para cima com os talheres perfilados para uma
cadeira vazia.
Vera
mal falou com Aurélio quando ele chegou da rua. Estava envolvida naquele
mistério da mulher do retrato que até se esqueceu do castigo das crianças.
Aurélio era outro absorto em pensamentos. Planejava nos mínimos detalhes a
noite que iria ter com a empregada. Mal sentia o gosto da comida. Comeu
mecanicamente o jantar e mal terminou, levantou-se e disse que ia deitar.
Anabela
continuava magoada com o seu pai. Ainda não se conformava que ele acreditava mais
numa estranha que nela, sua filha favorita. Sentada à mesa, observava a bruxa
alimentando sua avó. Tinha medo dela. Muito medo.
Juninho
mal tocou no prato. Estava com dor de cabeça e sentia calafrios. Sua mãe não
notou que ele estava com febre. Devia estar muito zangada com ele...
Dequinha
comeu tudo e pediu para repetir. Quando Fernanda trouxe outro prato para ela, a
menina sorriu e piscou o olho direito. Ela adorava a nova empregada!
Dona
Vitória só tinha olhos para Fernanda. A cada colherada, escancarava a boca
desdentada e passava a língua nos lábios. Sentia-se afortunada por ter a moça
ao seu lado.
Fernanda
raspava o resto da sopa no prato que segurava e imaginava a cara do idiota mais
tarde. Era hilário! Teve que se controlar pra não soltar uma gargalhada. Não ia
ficar bem ali no jantar. Mas que seria engraçado, seria.
Esse
foi mais um jantar no casarão.
Silencioso
e cada um perdido nos seus pensamentos.
************************
O
relógio em cima do criado mudo marcava meia-noite e meia. Aurélio estava
deitado de lado, de olhos bem abertos, ouvindo o ressonar de Vera ao seu lado,
deitada de costas para ele.
Depois
que ele tomou banho, viu sua esposa deitada de barriga para cima fitando o
teto, no mais completo silêncio. Ele ajeitou os dois travesseiros que usava e antes
de deitar, perguntou:
-
Quando cheguei, você disse que queria falar comigo.
Vera
assustou-se com a voz dele; estava imersa em pensamentos sobre a estranha moça
do retrato. Ela deu as costas e murmurou:
-
Agora não, Aurélio, deixa pra amanhã.
Intrigado,
ele deitou de lado. Estava sem camisa e só usava uma cueca samba canção. Sua
esposa andara estranha naquela noite. Mal abriu a boca no jantar...
"Vai
me mandar embora - chegou a essa conclusão. - Dessa vez a coisa é séria... Vai
me expulsar da sua casa!"
Se
fosse isso mesmo, ele ia protelar a decisão. Inventaria mil desculpas, diria
que estava doente, que não ia ficar longe das crianças, que não tinha dinheiro
para alugar uma quitinete...
Conhecia
o gênio da esposa. Se ela decidisse pela separação, nada faria que voltasse
atrás. Vera não era o tipo de mulher que se comovia facilmente com uma
chantagem.
E
ele indo embora, podia também dizer adeus aos cem mil reais e sua possibilidade
de uma independência financeira.
Os
minutos foram passando e os dois, como estranhos, ficaram imóveis na cama de
casal. Quando ouviu Vera ressonando, ele se levantou devagar. Saiu descalço do
quarto e atravessou o corredor escuro para a cozinha.
Bebeu
um gole d'água e entrou na área. Por um momento esqueceu de sua mulher e da
possível ameaça de despejo. O objetivo agora estava atrás da porta descascada
do quartinho de empregada. Era ali que ia desafogar suas angústias...
Bateu
com os nós dos dedos na porta. A área estava quase às escuras. Pelo basculhante da janela fechada, um feixe de luz amarelado vinha dos postes da rua.
Bateu
de novo e a porta abriu. Fernanda surgiu linda, com os cabelos soltos, usando
uma camisola transparente. Aurélio segurou-lhe os braços e a empurrou para
dentro.
Fernanda
lutou e empurrou ele de volta. Aurélio não entendeu:
-
O que foi?
-
Não podemos...
Aurélio
sorriu.
-
Já disse que não vou magoa-la como os outros...
-
Não é isso. - Os olhos dela brilhavam. - Eu sei que o senhor nunca iria me
magoar...
Ele
passou sua mão direita levemente sobre os seios empinados da moça e disse, com
a voz seca:
-
Vamos logo... Vera tem o sono pesado... Ninguém vai ouvir seus gritos...
Ela
afastou a mão dele e disse:
-
Não podemos fazer nada hoje... - Ela abriu mais a porta e Aurélio viu Dequinha
deitada na cama de solteiro da empregada.
Furioso,
se controlou para não gritar:
-
O que ela tá fazendo aqui?
-
Ela tava com medo - Fernanda explicou. - Disse que o quarto dela estava escuro
e cheio de fantasmas... Veio aqui e perguntou se podia dormir comigo,
como fazia com Belinda... Fiquei comovida e deixei... Não fica zangado
comigo...
-
Eu... eu... - Aurélio estava a ponto de explodir. - Logo hoje!!!!
-
Amanhã vou comprar uma lâmpada pra ela... e o senhor pode vir me visitar...
Sem
alternativa, Aurélio viu Fernanda fechando a porta na sua frente. Voltou
desolado para a sala e sentou-se na sua poltrona.
Passou
a noite em claro, sentado na poltrona, na escuridão da sala.
*******************
Enquanto
abraçava Dequinha, Fernanda não conseguia segurar o sorriso. Adorou ver a
decepção na cara do idiota.
"Tá
achando que as coisas são fáceis - pensou ela, acariciando os cabelos da menina
que dormia chupando o dedo. - Vai aprender que comigo as coisas não são como
quer... Vamos transar sim... só que vai ser no seu quarto, na cama que tua
mulher dorme! Ali sim, abro as pernas pra você... Só ali!"
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
Continua...
Rogerio de C. Ribeiro
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