Durante
o dia, a avenida principal do centro da cidade, na grande extensão de dois
quilômetros, multidões apressadas caminham pelas calçadas abarrotadas e pelas
ruas transversais; executivos com suas pastas nas mãos, donas de casa agarrando
suas bolsas coladas em seus corpos, estudantes indo e vindo das escolas e
faculdades, carros e ônibus parados em sinais fechados ou em engarrafamentos;
um turbilhão de comércios dos mais variados, bancos, Shopping Center.
Mas
quando começa o anoitecer, essa multidão desaparece das ruas, os comércios
fecham suas portas, os estudantes voltam para casa. A avenida do centro só
abriga seus moradores, muitos morando em quitinetes, a maioria solteira, que
alugam vagas e quartos dos poucos apartamentos antigos.
E
quando chega dez horas da noite, os poucos carros que passam pela avenida são,
na sua maioria, de homens e mulheres em busca de aventuras sexuais. Porque ali
na avenida, quando chega onze horas, prostitutas, travestis, traficantes ocupam
seus pontos de negócio.
E
para o morador insone que costuma fumar na janela e sua vista é a avenida, já
está acostumado com aquela cena, e sabe que a polícia é conivente com aquele
mercado da madrugada.
Por
isso, para quem é morador do centro da cidade, e principalmente da avenida
principal, preferem ficar em seus quartos, quitinetes, a não ser que estejam em
busca dessas aventuras, ou que sejam participantes desse mercado.
E
o insone solitário morador, que fique na janela com metade do cigarro nos dedos
esperando que o sono vença, verá nas esquinas os travestis com suas minúsculas
saias, com seus sapatos plataformas, exageradamente maquiadas, conversando com
os motoristas que lá param, agachadas pela janela do carona, combinando preços,
rindo, enquanto outros travestis se espalham pela avenida, ao lado das
prostitutas. Mas esse solitário morador, que frequentemente fuma um cigarro
antes de tentar dormir, também verá ela, figura tarimbada no meio dos travestis
e prostitutas.
Ela,
uma menina ainda, que devia ter treze, quatorze anos, era veterana na avenida.
Ela, a menina que chegava na adolescência, era bonita, seus cabelos castanhos
sempre arrumados, usando uma blusa fina que mostrava o formato dos seus
pequenos seios, usando um short pequeno onde um par de pernas esguias se equilibravam
em cima de um sapato de salto alto.
Ela
gostava de bastante maquiagem, principalmente para esconder algumas espinhas
que brotavam no seu queixo e na bochecha. Ela tinha olhos grandes e redondos, e
tinha um ar desafiador. Ela conquistou seu espaço na avenida graças com seu
carisma. As prostitutas mais antigas a protegiam dos cafetões e a aconselhavam
em relação às drogas e dos clientes. Diziam para ela que nunca fizesse nenhum
programa longe da avenida, que por ali tinha a proteção da polícia para que nada
de ruim lhe fosse acontecer.
Ela
ouvia os conselhos, mas na maioria das vezes achava que eram exagerados. Sabia
que era esperta, e que sabia se proteger sozinha.
O
camburão da polícia costumava passar pelo ponto, que ficava em frente ao
edifício 357 da avenida, prédio de quitinetes em que a maioria era composta de
quartos com três camas separadas por biombos, alugada por cafetões.
E
nesse edifício de número 357 ela morava com sua mãe, sua irmã de nove anos e
seu padrasto no apartamento 829. Dividiam um quitinete com um pequeno banheiro,
e o quadrado que se dizia sala tinha um sofá-cama que sua mãe dormia com o seu
padrasto, e ela dividia um colchão de solteiro no chão ao lado deles com sua
irmã.
Ela
cultivava planos de um dia poder sair dali, comprar um apartamento enorme de
frente para praia, poder dar conforto material e financeiro para sua família.
Mas
o pouco que conseguira ganhar nesse seu primeiro ano de avenida mal dava para
comprar suas roupas. Ela dizia para sua mãe, que era faxineira em uma casa de
família na zona sul da cidade, que as tiraria da pobreza. Sua mãe ria, fingindo
que acreditava nela. Só dizia: Em vez de
ficar sonhando, tem que arrumar um trabalho, nem que seja em casa de família.
Não vê o quanto ralo para botar comida em casa? Ainda tem sua irmã, sempre com
saúde frágil, sempre tossindo e com febre. Seu pai anda reclamando da sua
preguiça, da sua mania de sair todos dias para essas festas com suas amigas.
Ele me disse que é pra ficar de olho em você, menina. E ele tem razão, você é
mais uma para comer aqui e para comer, tem que botar dinheiro em casa.
O
pai que sua mãe se referia era seu padrasto. Um inútil, que dormia até
meio-dia, almoçava e saía para jogar com seus amigos bêbados. Ele era um
parasita, mas um parasita que sua mãe acolheu como companheiro.
Ela
então decidiu, no ano passado, em ficar na avenida. Já conhecia as prostitutas
que lá faziam ponto, e por várias vezes foi cantada pelo cafetão que mandava na
área para fazer ponto também.
Ela
dizia para si mesma que era uma menina corajosa. Não sentia pudor de se expor,
e com o trocado que ganhava, ajudava sua mãe.
Já
sua mãe, quando pegava o dinheiro que ela deixava na mesa todas manhãs, nunca
questionou qual era a procedência do mesmo. Simplesmente pegava a metade,
colocava na sua carteira e deixava a metade para seu companheiro. A sua mãe
acreditava que seu parceiro de sofá-cama era um azarado nos empregos, e se
alguém fosse perguntar o que ele fazia nas tardes, respondia que ele estava
preenchendo fichas em agências de emprego ou em filas na frente de empreiteiras
para poder ser fichado para um serviço.
E
nessa pseudo-crença na sua casa, ela continuava fazendo seus pontos na avenida,
nas madrugadas. Em uma noite de sorte conseguia fazer três programas. Mesmo
sendo a mais bonita entre os travestis e putas, muitos clientes a rejeitavam
por ser menor. Ela mentia na sua idade, mas os clientes, com as ondas de
prisões a pedófilos, e vendo o camburão com os quatro policiais que estacionava
em frente ao prédio e iam comer um churrasquinho que uma nordestina preparava,
ou iam embora zarpando nos seus carros ou chamavam uma prostituta mais velha
para o programa.
O
insone morador do prédio em frente que acendia outro cigarro porque naquele
madrugada quente o sono não vinha, tinha sua atenção na menina, que às vezes
ficava sentada em uma mesa junta de outros caras, bebendo cerveja, deixando-se
ser bolinada por um mais afoito, pedindo um hambúrguer e escutando algum convite vindo de um senhor de uns 60
anos, que mantinha suas mãos grandes nas pernas magras da menina. E quando ela
via que não teria muito lucro vindo desses parasitas que só queriam beber, ela
se levantava, se despedia gentilmente e agradecia pela cerveja ou pelo
sanduíche, e ia para a esquina, sentava em um bloco redondo de cimento e
conversava com suas colegas de profissão.
O
que o insone e solitário morador na janela do seu quitinete em frente ao prédio
357 não soube o que houve de verdade com sua musa das noites quentes e solitárias
em uma madrugada não tão distante.
Ela
estava de pé, na esquina da avenida com uma rua transversal que permanecia
deserta, quando veio uma luz no fim da rua se aproximando. O morador solitário,
com seu cigarro quase apagado, viu quando ela debruçou-se na janela do carona e
falou com o motorista. Mas ele não ouviu o que foi dito naquele instante:
-
Vamos fazer um programa, garota, mas tem que ser na minha casa - disse o
motorista, um jovem de 20 e poucos anos, com um pequeno cavanhaque no queixo.
Ela
lembrou-se dos conselhos recebidos das suas colegas de avenida, de que era
roubada fazer um programa longe da área, que para isso tinha as camas nos
prostíbulos do prédio 357; tentou argumentar que não, mas o jovem negociou, os
olhos brilhando pelo corpo da menina, prometeu pagar o dobro se ela fosse ao
apartamento dele. Ela então pensou que não tinha mais dinheiro, nem para dar a
sua mãe, nem para comprar o remédio para sua irmã.
Então
ela decidiu, mesmo a contragosto: entrou no Ford Ranger do cliente e ele deu
partida, seguindo rua abaixo.
O
jovem prometia que depois a deixaria ali próximo, mas que ela tinha que ficar
uma hora com ele, pelo menos. Com o que ia receber de pagamento pelo programa,
para ela estava sendo tudo ótimo.
Quinze
minutos o carro diminuiu a velocidade em frente de um edifício alto e luxuoso.
Parou em frente da garagem e buzinou. A porta levantou-se devagar e ele entrou,
rápido. Depois de estacionar, foram os dois para o elevador e quando entraram,
o rapaz apertou o botão do décimo andar. Entraram no apartamento 1001, e o
rapaz disse que ia ao banheiro. Ela ficou parada, no meio da sala, fascinada
com tudo que via, as grandes janelas que davam para a praia em frente, para os
móveis luxuosos, os quadros pendurados nas paredes, tudo limpo, sem nenhuma
poeira. Ela sentou-se no grande sofá e sentiu-se afundar nele. Ela tinha
certeza que um dia teria um apartamento igual a esse. Sabia que ia ter que
fazer bastantes programas, aturar os clientes decrépitos em carros velhos que
lhe pagavam só para olhar seus peitinhos enquanto se masturbavam ao seu lado;
os clientes que cismavam em passar das contas com ela, mas que eram contidos
pelo cafetão da área; àqueles que alisavam suas pernas e soltavam gracejos
regados ao bafo fétido de cerveja ou cachaça. Sim, ela aturaria a isso tudo,
até a chantagem que recebia do porteiro do prédio que morava, que a ameaçava
que ia contar tudo para sua família e ela para pagar o silêncio dele tinha que
masturba-lo na recepção, atrás do grande balcão onde ele recebia as
correspondências ou às vezes fazendo um sexo oral nele.
Não,
ela ia subir rápido na vida, se todo dia tivesse um cliente como agora, jovem,
rico e ingênuo - disposto de pagar o dobro do programa.
Ela
o ouviu saindo do banheiro e resolveu tirar suas roupas. Será que fará ali
naquele sofá gostoso ou em uma imensa cama de casal? O lugar não importava, o
que seria prazeroso seria quando pegasse o dinheiro e saísse fora dali. O rapaz
chamou-a para o quarto e ela foi, só usando uma calcinha preta rendada e
descalça pisava em um felpudo tapete que se esparramava pelo chão do corredor
iluminado com lâmpadas fluorescentes. Viu uma porta semiaberta e ela entrou,
confiante. Nunca abandonava sua eterna autoconfiança.
E
ao lado de uma cama de casal, que não era como ela imaginara antes, estava o
rapaz, nu em pelo. E ali dentro do quarto, além do rapaz, tinha outro deitado
na cama e outro atrás da porta. Ela gritou, dizendo que não fazia programas em
grupo. Tentou correr de volta para a porta, mas o jovem que estava atrás a
empurrou. Ela caiu sentada. Tentou esconder os seios, como num gesto de pudor,
mas o rapaz do carro pegou-a pelos cabelos e a obrigou em ficar de pé. Ela
implorou, dizendo que não queria mais fazer nenhum programa, mas o rapaz do
carro deu um tapa na cara dela, o barulho do tapa ecoou dentro da cabeça da
menina. Ficou tonta e caiu deitada na cama. O jovem deitado agarrou seus seios,
outro arrancou sua calcinha e enfiou o nariz no meio de suas pernas; o rapaz do
carro preferia bater nela, dava tapas, socos, puxou os cabelos até arrancar
alguns fios. Um montou sobre ela e a penetrou com raiva, com violência,
fazendo-a gritar alto. Enfiaram uma fronha na sua boca, e ela sentiu-se
sufocada. E mais tapas, socos, um urinou no seu rosto, essa sessão de violência
nela parecia que durava horas, para ela aquilo tudo era interminável. Não
usaram preservativos, dois deles se drogaram sentados no quarto, um tinha uma
seringa e aplicou no braço dela. Berravam e uivavam feito lunáticos; diziam
olha a viagem, viagem, viagem, virgem,virgem... As palavras se amontoavam,
misturavam-se, ela não entendia mais nada, só sentia dor entre suas pernas, dor
no soco que levou no olho direito, dor na cabeça pelo tufo de cabelos
arrancados.
E
depois, muito mais tarde, onde ela achava que não teria mais fim, o rapaz do
carro ordenou que ela fosse embora. Caída no chão, rastejava em direção da
porta quando levou chutes no peito e nas costelas. Um rapaz dormia, outro
fumava maconha, entretido ao lado do banheiro da suíte.
Ela
andou, capengando para a sala, e vestiu-se. Tudo nela doía. O rapaz do carro
jogou três notas de cinquenta em cima dela, e o dinheiro espalhou-se no chão.
Disse para ela pegar a grana e sumir de lá. Lembrou-a que era filho de um
importante empresário, e se ela fosse denunciar para a polícia, ele acabaria
com a vida dela. Chamou-a de porca para baixo e a empurrou para fora do
apartamento.
Ela
desceu, passou por um porteiro que cochilava, saiu e esperou o ônibus para o
centro. Quando conseguiu pegar, pagou e sentou-se em um banco, enfiando seu
rosto pela janela aberta. O vento amenizou a dor que sentia no rosto, e alguns
passageiros mal notaram uma menina de treze anos descabelada, com um olho roxo,
sangue pisado no lábio inferior, fora a mancha roxa na altura das costelas.
Já
amanhecia quando saltou do ônibus. Suas colegas e conhecidos que fazem plantão
em frente do 357 já haviam se recolhido; agora era a hora da multidão, dos
escritórios abertos, dos bancos e comércios abertos para seus fregueses.
Ela
entrou no seu apartamento, e viu sua mãe terminando de beber um copo de café. A
mãe olhou para ela, mas não mostrou surpresa nem piedade em seu rosto. Sua mãe
só tinha olhos de espera. O padrasto roncava, deitado de lado no sofá-cama, e
sua irmã dormia debaixo de um lençol no colchão fino ao lado.
Ela
tira duas notas dentro do seu short e estende a mão com o dinheiro. A mãe pega
os cem reais, guarda-os na bolsa, diz que está atrasada, e reclama que precisam
fazer uma compra de mês. E sai, simplesmente sai, trancando a porta por fora.
Ela
arranca toda roupa, mete-se debaixo do chuveiro e fica ali uns quarenta
minutos. Vestida com uma camisola, enfia-se debaixo do lençol, abraça sua irmã
por trás sentindo que ela estava febril. O ronco do padrasto a incomoda. O sol
inclemente da manhã invade na única janela da quitinete. Sentindo os olhos
pesando de sono, esquece as dores que atormentam todo corpo físico e abraça sua
irmã mais forte. Hoje era dia de batalha. E amanhã também. E antes que caísse
no sono, com o dinheiro que restou do programa e estava no bolso do seu short
pendurado no banheiro, poderia comprar o
vestidinho decotado na loja que vira e tanto gostara.
Rogerio de Castro Ribeiro
05/04/2014
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