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quarta-feira, 23 de abril de 2014

BRILHO DO GUME

BRILHO DO GUME

Ele estava ali sentado na velha cadeira de fórmica na pequena sala com as luzes apagadas de frente para a porta esperando que ela chegasse. Já tinha olhado as horas no velho relógio de pilha pendurado na parede, eram onze e meia da noite. Daqui a pouco ela chegaria, e ele estaria ali de plantão para recebê-la. E quando ela abrisse a porta, seria a última vez que pisaria naquela sala. Porque ela mesma já tinha dito isso a ele no dia anterior que no máximo em dois dias ia arrumar suas malas e se mudar para o apartamento dele. Ele nunca foi apresentado ao outro, e nem queria saber como era. O importante era ela, e ela enfatizou que precisava viver sua vida. Só que esse argumento era frágil, e ele sabia que o que ela queria era se ver livre dele, da casa, do passado. E do modo enfático como disse, ele sabia que sem ela seria o seu fim. Mas também seria o fim dela. Por isso estava sentado em absoluto silêncio na cadeira de fórmica, e segurava com as duas mãos uma imensa faca de cortar carnes. Se concentrava ao máximo para poder escutar o ruído do carro dele estacionando e o barulho dos saltos do sapato dela pisando na entrada de cimento cru até a porta. E procuraria o chaveiro da casa dentro da bolsa. Enquanto procura as chaves, vira a cabeça para trás e se certifica que ele continua estacionado esperando que ela entrasse em casa. E ela encontra a chave, coloca na fechadura e gira a chave duas vezes. Volta-se de novo e manda um beijo para o cara, que acena e vai embora em disparada. Essa cena ele viu centenas de vezes escondido por detrás das cortinas da janela. O ciúme que sentia quando via essas cenas românticas o trucidavam por dentro. Mas era ela entrar que o ciúme amainava um pouco. Porquê ela ficava com ele sempre. Nunca mencionou que ia embora. Eram como siameses, a vida deles era sem parágrafos e nem parênteses. Era uma vida dentro de uma redoma de cumplicidade, de segredos. Ela o escondia de todos. Mas ele não se importava em ser excluído dos círculos dela porque ela ainda ficava com ele. Era a promessa que um fez ao outro que os fortaleciam. Porque ela dependia dele e ele dela. Desde que eram crianças. Quando perderam seus pais e ficaram a mercê do mundo. Mas ele a protegia dos riscos, furtava para comerem, dormiram na rua, mas um dia ele foi trabalhar e pôde alugar essa casa. E bancou os estudos dela. Ela se formou e agradeceu a ele tudo que fizera. E ele acreditou nas palavras dela. E um dia ela conseguiu o emprego. A vida ia melhorar para eles. Entre os dois nunca era no singular, era sempre no plural. Ele que trabalhava de coveiro no cemitério municipal convivia com a morte todos dias e quando chegava em casa e via sua irmã o esperando, respirava vida. Ela era seu oxigênio e queria tirar isso dele. Mas ele não ia deixar. A promessa que fizeram quando crianças foi de um nunca abandonar o outro. E ela quebrou a promessa. Então ele resolveu que nessa noite a esperaria para se despedirem um do outro. Ele a abraçaria e enfiaria a faca até o cabo nela e depois se mataria. Eram como siameses, eram como um só, ela a bela e ele a fera. Tinham uma vida sem parágrafos e nem parênteses. Ele olha a lâmina da faca e no escuro consegue enxergar o brilho do gume. Tira os olhos da faca e volta a atenção para a porta trancada. São meia-noite, é a hora dos monstros e dos vampiros, a hora do terror. E ele permanece feito estátua, com as costas curvadas de tanto cavar e tapar buracos, esperando pacientemente o som do carro e dos passos. E quando bate duas e meia finalmente ouve. Se apruma na cadeira atento. E escuta a porta do carro batendo. E um vago som de risos. Claro que ela estaria rindo dele, o coveiro, o monstro corcunda que assustava as crianças. Até ontem ele não tinha defeitos para ela, agora era o aleijado que atrapalhava o futuro dela. Ela quebrou a promessa e jogou dentro da privada. Não queria saber como ele seguiria na vida sem ter ela ao lado. Por causa de um cara de dinheiro, bonito, ela esqueceu-se de tudo. Mas ele não esquecia de nada. Sua vida era sem vírgulas e nem de acentos. Mas daqui a pouco a vida dos dois teria o ponto final. Ouviu agora o portão sendo aberto e depois fechado, mesmo ali sentado na escuridão visualizava ela sorrindo para o cara e mandando beijos. Escuta o som dos saltos altos dos sapatos dela pisando no caminho de cimento. E o barulho dela mexendo na bolsa procurando as chaves. Agora está empertigado na cadeira. Mantém o braço caído ao lado do corpo segurando a faca de cortar carnes pelo cabo. Era impressão sua ou via o brilho do gume iluminado a porta em frente? Não importa, já escutou o barulho das chaves no chaveiro em forma de coração que ele deu a ela tempos atrás. O barulho da chave sendo introduzida na fechadura. A primeira volta. Ele ficou de pé. Agarrou com mais força o cabo da faca. Não tirava os olhos da porta. Segunda volta na chave. Silêncio. Ela mandava um beijo para o cara que acenava de volta. Ouviu agora o barulho do arranque do carro. Agora ele relaxou a mão que segurava o cabo. Uma vida sem parágrafos e nem parênteses. Era uma vida só deles, os dois dentro de uma redoma para se protegerem do mundo lá fora. E ela quebrou a redoma. E queria voar. Fugir dele. Sentia sua respiração ofegante. E viu, como em camera lenta a maçaneta da porta girar. E a porta abriu. E um vulto entrou na escuridão da sala...


Rogerio Ribeiro

21 de abril de 2014  

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