BRILHO DO GUME
Ele estava ali sentado
na velha cadeira de fórmica na pequena sala com as luzes apagadas de frente
para a porta esperando que ela chegasse. Já tinha olhado as horas no velho
relógio de pilha pendurado na parede, eram onze e meia da noite. Daqui a pouco
ela chegaria, e ele estaria ali de plantão para recebê-la. E quando ela abrisse
a porta, seria a última vez que pisaria naquela sala. Porque ela mesma já tinha
dito isso a ele no dia anterior que no máximo em dois dias ia arrumar suas
malas e se mudar para o apartamento dele. Ele nunca foi apresentado ao outro, e
nem queria saber como era. O importante era ela, e ela enfatizou que precisava
viver sua vida. Só que esse argumento era frágil, e ele sabia que o que ela
queria era se ver livre dele, da casa, do passado. E do modo enfático como
disse, ele sabia que sem ela seria o seu fim. Mas também seria o fim dela. Por
isso estava sentado em absoluto silêncio na cadeira de fórmica, e segurava com
as duas mãos uma imensa faca de cortar carnes. Se concentrava ao máximo para
poder escutar o ruído do carro dele estacionando e o barulho dos saltos do
sapato dela pisando na entrada de cimento cru até a porta. E procuraria o
chaveiro da casa dentro da bolsa. Enquanto procura as chaves, vira a cabeça
para trás e se certifica que ele continua estacionado esperando que ela
entrasse em casa. E ela encontra a chave, coloca na fechadura e gira a chave
duas vezes. Volta-se de novo e manda um beijo para o cara, que acena e vai
embora em disparada. Essa cena ele viu centenas de vezes escondido por detrás
das cortinas da janela. O ciúme que sentia quando via essas cenas românticas o
trucidavam por dentro. Mas era ela entrar que o ciúme amainava um pouco. Porquê
ela ficava com ele sempre. Nunca mencionou que ia embora. Eram como siameses, a
vida deles era sem parágrafos e nem parênteses. Era uma vida dentro de uma
redoma de cumplicidade, de segredos. Ela o escondia de todos. Mas ele não se
importava em ser excluído dos círculos dela porque ela ainda ficava com ele. Era
a promessa que um fez ao outro que os fortaleciam. Porque ela dependia dele e
ele dela. Desde que eram crianças. Quando perderam seus pais e ficaram a mercê
do mundo. Mas ele a protegia dos riscos, furtava para comerem, dormiram na rua,
mas um dia ele foi trabalhar e pôde alugar essa casa. E bancou os estudos dela.
Ela se formou e agradeceu a ele tudo que fizera. E ele acreditou nas palavras
dela. E um dia ela conseguiu o emprego. A vida ia melhorar para eles. Entre os
dois nunca era no singular, era sempre no plural. Ele que trabalhava de coveiro
no cemitério municipal convivia com a morte todos dias e quando chegava em casa
e via sua irmã o esperando, respirava vida. Ela era seu oxigênio e queria tirar
isso dele. Mas ele não ia deixar. A promessa que fizeram quando crianças foi de
um nunca abandonar o outro. E ela quebrou a promessa. Então ele resolveu que
nessa noite a esperaria para se despedirem um do outro. Ele a abraçaria e
enfiaria a faca até o cabo nela e depois se mataria. Eram como siameses, eram como
um só, ela a bela e ele a fera. Tinham uma vida sem parágrafos e nem
parênteses. Ele olha a lâmina da faca e no escuro consegue enxergar o brilho do
gume. Tira os olhos da faca e volta a atenção para a porta trancada. São
meia-noite, é a hora dos monstros e dos vampiros, a hora do terror. E ele
permanece feito estátua, com as costas curvadas de tanto cavar e tapar buracos,
esperando pacientemente o som do carro e dos passos. E quando bate duas e meia
finalmente ouve. Se apruma na cadeira atento. E escuta a porta do carro
batendo. E um vago som de risos. Claro que ela estaria rindo dele, o coveiro, o
monstro corcunda que assustava as crianças. Até ontem ele não tinha defeitos
para ela, agora era o aleijado que atrapalhava o futuro dela. Ela quebrou a promessa
e jogou dentro da privada. Não queria saber como ele seguiria na vida sem ter
ela ao lado. Por causa de um cara de dinheiro, bonito, ela esqueceu-se de tudo.
Mas ele não esquecia de nada. Sua vida era sem vírgulas e nem de acentos. Mas
daqui a pouco a vida dos dois teria o ponto final. Ouviu agora o portão sendo
aberto e depois fechado, mesmo ali sentado na escuridão visualizava ela
sorrindo para o cara e mandando beijos. Escuta o som dos saltos altos dos
sapatos dela pisando no caminho de cimento. E o barulho dela mexendo na bolsa
procurando as chaves. Agora está empertigado na cadeira. Mantém o braço caído
ao lado do corpo segurando a faca de cortar carnes pelo cabo. Era impressão sua
ou via o brilho do gume iluminado a porta em frente? Não importa, já escutou o
barulho das chaves no chaveiro em forma de coração que ele deu a ela tempos
atrás. O barulho da chave sendo introduzida na fechadura. A primeira volta. Ele
ficou de pé. Agarrou com mais força o cabo da faca. Não tirava os olhos da
porta. Segunda volta na chave. Silêncio. Ela mandava um beijo para o cara que
acenava de volta. Ouviu agora o barulho do arranque do carro. Agora ele relaxou
a mão que segurava o cabo. Uma vida sem parágrafos e nem parênteses. Era uma
vida só deles, os dois dentro de uma redoma para se protegerem do mundo lá
fora. E ela quebrou a redoma. E queria voar. Fugir dele. Sentia sua respiração
ofegante. E viu, como em camera lenta a maçaneta da porta girar. E a porta
abriu. E um vulto entrou na escuridão da sala...
Rogerio Ribeiro
21 de abril de 2014
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