Translate

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O CARTÃO CAPÍTULO 5

ATENDIMENTO PERSONALIZADO

- Falta um número. - Eunásio disse em voz alta enquanto relia pela terceira vez a mensagem que recebera: "Para desbloqueio do seu cartão e troca da senha padrão, ligar para o telefone 222-3333" .
- Senhor? - Kellerson abandonou as palavras cruzadas que fazia e agora estava em pé ao lado dele. Eunásio nem percebeu a aproximação do rapaz marcado de espinhas vermelhas enfeitando sua cara.
- Não é nada - disse o conferente, dobrando o papel e escondendo-o na palma da mão. O contínuo deu de ombros. Ele tinha uma pequena pasta debaixo do braço e com passos rápidos saiu do escritório.
"Agora tá claro que isso tudo é armação. Querem desviar meu foco das planilhas de pagamento de todo jeito. Enquanto eu ficar aqui matutando de um cartão que nunca pedi, se cria um véu e esconde os erros que eles cometem. E não cumprindo minha função, acabo parando no olho da rua. Com certeza agiram dessa forma com o antigo conferente. Armaram tanto pra cima do coitado que acabou tendo um piripaque e agora está em casa encostado. Mas se pensam que também vou baixar a guarda, eles estão muito enganados. Eunásio pensou, com raiva daquela brincadeira sem graça. Ainda não sei como criaram esse cartão; é provável que compraram de alguma loja que vendem coisas para enganar trouxas. Só pode ser isso. Só que como dizem, nenhum crime é perfeito. Nessa ansiedade de sacanear, acabaram cometendo um erro primário. Esqueceram de botar mais um número no telefone que inventaram. Mas deixa quando eles vierem do almoço. Vou acabar com essa palhaçada!"
Não teve que esperar muito tempo. Menos de dez minutos os quatro chegaram juntos e cada um foi para sua mesa. Eunásio disfarçava, simulando que estava compenetrado em um relatório de compras, mas seus olhos ampliados pelas grossas lentes dos óculos corriam sorrateiramente por toda sala. Maurílio parecia concentrado com alguma coisa no computador. Se estava preparando a folha de pagamento dos peões  ou   assistindo um vídeo pornô, Eunásio não sabia. Mas desconfiou do sorriso malicioso estampado naquele rosto com uma sombra azulada de barba feita enquanto espremia os olhos no monitor; com certeza, coisa boa não era.
Atrás da mesa de Maurílio, Eurico, um sujeito magro e ossudo, discutia com alguém pelo celular que agarrava com uma mão com estufadas veias azuis. Seu comprido pescoço vermelho também tinha um par de veias azuis que pareciam prontas para explodir enquanto ele soltava perdigotos na tela do seu computador a cada frase sussurrada temperada de ódio. Desde que entrou na firma, Eunásio nunca viu Eurico sem aquele celular colado na orelha e discutindo com alguém. Imaginou se Eurico tomava banho com o celular e dormia com ele. Riu baixinho com a imagem que criou.
A mesa de Birinha ficava ao lado a do Maurílio, mas quase não sentava ali. Normalmente puxava uma cadeira e sentava ao lado de Xuvisquem. Mal chegaram do almoço, discutiam da última partida do Flamengo e dos erros de arbitragem que prejudicaram o time. Enquanto Birinha esbravejava, Xuvisquem sussurrava, concordando com o amigo. Logo em seguida o novo tema em debate era sobre as novas garotas que  frequentavam o Clube Cinco de Julho  e depois o tema foi falta de dinheiro. As discussões mudavam de repente mas Eunásio notou que único assunto que nunca discutiam era das tarefas que tinham que fazer na empreiteira.
A porta abriu de repente e Vandilson atravessou a sala sem falar com ninguém. Atrás dele Andrezinho vinha quase correndo. Pela janela de vidro que separava a sala do patrão, Eunásio viu André, o eterno puxa-saco, tagarelando e ao mesmo tempo gesticulando os braços para um Vandilson entendiado, sentado na sua grande cadeira de couro, que enquanto o ouvia, tamborilava uma caneta na mesa.
Um deles... Ou todos juntos... Agora desmascaro eles...
Eunásio empurrou o relatório para o lado, estendeu o braço e pegou o telefone fixo. Discou o número zero e quando ouviu o som contínuo da linha, teclou os números da estranha mensagem.
Me sinto um completo idiota. Daqui a pouco um deles vai cair na gargalhada e vai acabar se entregando.
- Estranho - Eunásio disse de propósito em voz alta e aparentando curiosidade. - Como vou desbloquear meu cartão de crédito se o número que me passaram está faltando um número?
Eunásio ficou em silêncio enquanto em uma das mãos segurava o fone e a outra mantinha o indicador suspenso em cima das teclas do telefone fixo. Esperou para ouvir as risadas e indiretas dos colegas, mas notou, zangado, que ninguém prestou atenção no que ele tinha falado. Continuavam agindo da mesma forma como quando chegaram do almoço. O ignorando completamente.
Ah, é? Estão querendo que eu ligue. Vou fazer a vontade deles.
Eunásio teclou os sete números já sabendo de antemão que o único som que ia ouvir seria o sinal de ocupado.
- 222 - enquanto teclava dizia os números em voz alta. - 3333 - Para sua surpresa, ouviu o som do sinal chamando.
Como é que pode?
Atenderam no primeiro toque.
- Cartão de crédito Infinito, em que posso ajudar? - Ouviu uma voz masculina no outro lado da linha.
Sentiu a mão que agarrava o fone tremendo. Como era possível? Mentalmente contou os números, confirmando que eram apenas sete. Será que era daquelas ligações gratuitas?
- Alô... - Eunásio soltou um fiapo de voz.
Ouviu a voz masculina dizendo:
- Atendente Lucian Belmar, pois não.
Sentiu a garganta seca e uma súbita tontura. Bagos de suor deslizavam pelo seu rosto e encharcavam o colarinho da sua camisa social. Seus colegas do escritório continuavam nos seus afazeres e na sala do patrão Andrezinho mostrava uma revista para um agora interessado Vandilson que folheava as páginas avidamente.
- Alô - disse Eunásio novamente. - Quem é que está falando?
- Atendente Lucian Belmar  - repetiu a voz do homem, com paciência - Posso ajudar o senhor em alguma coisa?
Eunásio respirou fundo. Mesmo com a temperatura glacial que fazia na sala por causa do ar-condicionado, rios de suor empapava suas costas, colando a camisa no corpo.
- Recebi um cartão de crédito por engano - Eunásio disse.
O atendente Belmar retrucou com uma voz calorosa:
- Impossível, senhor.  
- Tanto que não é impossível que recebi duas vezes um cartão que nunca pedi.
- Tem certeza que o senhor não pediu?
- Acabei de falar isso.
- O cartão está com o senhor?
- Está - Eunásio replicou, tonto. - Aqui na minha frente.
- Como é o seu nome? - Perguntou o Atendente Belmar, com a voz soando gentil.
- Eunásio Pindorello.
- Aguarde só um momento. Vou verificar no sistema.
Eunásio achou que ouviria a gravação de uma irritante música enquanto ficaria plantado com o fone na orelha durante uns cinco minutos, mas o que ouviu mesmo foi um farfalhar de folhas sendo viradas, como se fosse um caderno.
Caderno em espiral, pensou.
Enquanto chegava no outro lado da linha o som de páginas sendo viradas, Eunásio espiou Maurílio. O sujeito barrigudo e peludo tinha se levantado e agora abria e fechava as gavetas do arquivo catando pastas separadas por ordem alfabética e juntando algumas consigo. Birinha  estava em pé com as mãos nas costas ao lado da grande janela reclamando que não via nenhuma mulher bonita no pátio do estaleiro.
- Aqui no estaleiro, acho que só Lindinha se salva... - lembrou Eurico, refestelado na sua cadeira e com as pernas esticadas sobre sua mesa atulhada de papéis com o celular colado na orelha. Ouviu alguma coisa e disse: - Não, meu amor, estou falando com Birinha. É, eu falei que só você, minha lindinha, que me salva. - Eurico soltou um sorriso e piscou para Birinha, que contribuiu a piscadela.
- Nem essa salva mais - lamentou Xuvisquem com sua tranquila e macia voz. - Tô sabendo que ela anda saindo com Zé Ducão.- Ante a expressão surpresa de Birinha, continuou: - Não, irmão, você não ouviu mal. Ducão, o encarregado de manutenção. O que fica espalhando propaganda enganosa de que tem três pernas. Quando me disseram, juro que no início não acreditei. Fiquei pensando comigo mesmo, não é possível que uma menina tão bonita ia se envolver com um cara como aquele. A menina, além de linda, é de uma simpatia fora de série, e o Ducão a gente já conhece como é.  Quando Andrezinho me contou que tudo era verdade, fiquei de cara. E pra completar ainda vi aquele piteuzinho saindo da Renave de mãos dadas... Captaram? De mãos dadas com aquele ogro de dois metros e com cara de psicopata.
Mesmo carregando mais de dez pastas nos braços, Maurílio prestava  atenção no que Xuvisquem falava. Quando chegou na sua mesa abriu os braços e as pastas caíram sobre outras que já estavam ali.
- A Bela e a Fera - Maurílio silvou enquanto voltava para o arquivo.
- Pode levar fé no que vou falar - Birinha disse com raiva. - Essa garota só tem pose. Metida a gostosa e difícil. Não é por que mostra os dentes que é simpática. Ela não vale nada, é igual a uma nota de três reais.Nem de graça quero aquela boceta.
- Não desdenha o que não pode comprar - Eurico riu. - Fala isso porque a menina nunca te deu mole.
- O negócio é que ela gosta da terceira perna do chefe de obras - Maurílio gargalhou. Ele tinha o cotovelo apoiado na gaveta aberta do arquivo e participava da conversa com os olhos brilhando. - Ela é daquele tipo que morre de tesão com peão de obra. Se o cara tá usando macacão sujo e capacete, aí mesmo que ela baba. Quem trabalha no administrativo não significa porra nenhuma pra ela.
- O cara tem que ter calo na mão - calculou Xuvisquem. - E tem que tá fedendo quando fica em cima dela...
- E adorar chupar um pau sebento - Maurílio dobrou de tantas gargalhadas.
Enquanto aguardava o retorno do atendente Belmar, Eunásio ouvia aquela conversa ao seu lado. Não acreditava que aquela linda morena que tinha um exuberante sorriso estivesse saindo com Zé Ducão. Era o mesmo que misturar água com azeite. Mas, ora bolas, e se estivesse saindo? A vida era dela. Não tinha que dar satisfação para ninguém. Nessa vida tem gosto para tudo.
- Seu Eunásio Pindo? - Ouviu a voz do atendente no outro lado da linha.
O conferente sentiu os dedos contraindo o aparelho colado no seu ouvido:
- Estou na linha.
A voz do atendente era gentil:
- Mais uma vez o cartão Infinito agradece pela sua preferência. O senhor pretende trocar a senha do cartão?
Eunásio tinha um bolo comprimindo sua garganta.
- Droga! Não pedi nenhum cartão.
- Ah,sim, entendi, o senhor prefere permanecer com a senha padrão que é zero, zero, zero e zero. Quatro vezes zero.
- Não foi isso que disse. Comuniquei que não...
- O senhor pode utilizar o cartão em qualquer banco de autoatendimento, como também em compras em lojas, supermercados...
- Belmar? Seu nome é Belmar?
- Lucian Belmar, às ordens. O senhor prefere que eu o chame de senhor ou de você?
- Prefiro nada. Quero que me explique só uma coisa. Que empresa é essa que manda uma correspondência sem remetente e ao invés de mandar pelo correio entrega em mãos? E que sistema é esse que tudo é anotado num caderno? Que brincadeira é essa?
- Bem, senhor, a data de virada do seu cartão é todo dia dezoito, e a fatura é para todo dia cinco do outro mês. Está bom para o senhor?
- Não ouviu nada do que falei agora? - Nervoso, Eunásio sentia o coração disparando.
- Entendi - disse o atendente Belmar em uma voz compreensiva. - O senhor prefere que a data da fatura seja todo dia dez de cada mês. Posso alterar aqui no sistema...
- Caderno - rugiu Eunásio, impotente.
- Já modifiquei a data da fatura. Mais alguma dúvida, senhor?
- Não quero nenhum cartão - Eunásio sabia que se não controlasse os nervos, podia ter um troço qualquer.
- O senhor já falou isso antes. - A voz do homem era paciente, como se estivesse falando com uma criança de cinco anos. - E já anotei no sistema. A senha do cartão é o zero, zero, ze...
- Me escuta!
No escritório os colegas continuavam contando suas mentiras, ignorando-o completamente. Até Kellerson, que chegara da rua, juntou-se ao grupo. E na sala privativa do patrão, Andrezinho mostrava outra revista para um Vandilson sorridente e exalando luxúria dos olhos.
- Seu Eunásio Pindo, nossa empresa espera que faça bom uso do seu cartão de crédito.
Sentiu que perdia o resto da paciência com aquela voz robótica.
- Meu amigo - Eunásio puxou forças para não perder o fiapo de controle. - Pela última vez vou falar. Eu. Não. Pedi. Porra.Nenhuma. De. Cartão.
- Não é isso que o sistema me diz - Era impressão sua ou a voz do atendente Belmar agora soava irônica?
E mais uma vez,  que sistema era aquele que era anotado em um caderno?
- Dane-se o sistema. Vocês erraram de cliente. Mandaram um cartão para mim, mas que deve ser de outro Eunásio.
- Nossa empresa tem como meta nunca cometer erros.
- Mas sempre tem uma primeira vez? Não conhece essa frase? Dessa vez sua empresa errou. Como está escrito meu sobrenome?
Novamente ouviu o som de páginas sendo viradas.
- Eunásio Pindo. - Respondeu o atendente, a voz soando cansada.
- Só Pindo? - Ali estava o erro. - Mais nada? É isso que tô tentando te explicar. Sei que não é culpado dos erros cometidos em outro setor, mas aí está a prova que...
- Senhor, seu nome completo é Eunásio Pindo... - Foi impressão sua ou notou uma leve hesitação no tom da voz do atendente Belmar?
- Viu, só não entendi ainda o porquê de entregar a correspondência em mãos no meu trabalho, já que ninguém sabia que eu tinha...
- ... Pindorello. Eunásio Pindorello - completou o atendente Belmar, agora soando com enfado.
Eunásio engoliu em seco.
- Não falou que era só Pindo?
- Disse o que está escrito no seu cartão. Seu sobrenome é grande, por isso foi reduzido.
-  Bem, quero então cancelar esse cartão que nunca pedi.
- O senhor quer anotar o número do protocolo ou não?
- Não quero saber de protocolo nenhum, só quero...
O som da voz agora soou eufórica:
- Seu cartão foi desbloqueado e sua senha é a padrão. Agradecemos pela sua ligação. Qualquer dúvida o senhor pode nos contactar novamente.
- Ei, espera aí,  não é isso, não posso ser dono do cartão, meu nome está sujo no...
Tu tu tu tu tu - O atendente Belmar interrompeu a ligação.
Eunásio pousou lentamente o fone no gancho e se ajeitou na cadeira, alto e ereto, tonto e com o semblante fechado. O falatório corria solto ao seu lado mas ele não entendia nenhuma palavra dita.
Novamente pegou o cartão de crédito de cor preta com detalhes em prateado e passou a ponta do dedo indicador sobre os relevos. Ainda se sentindo desconcertado, guardou automaticamente o cartão no bolso da camisa e suspirou
Isso não tá acontecendo comigo, pensou enquanto ajeitava o relatório para conferir.
Ouviu uma sonora gargalhada. Não sabia de onde veio aquela gargalhada, mas com certeza estavam rindo dele.
Baixou a cabeça e ajeitou os óculos.
Deixa pra lá. Eles ganharam. Não falaria mais nada a respeito do cartão.  Sua defesa agora eram os erros dele nas folhas de pagamento. Vamos ver quem vai rir por último nessa brincadeira sem graça.



Continua...
No próximo capítulo

É SEMPRE BOM JANTAR COM A FAMÍLIA


 Rogerio de C. Ribeiro

Um comentário:

  1. A cada capítulo,uma emoção... aumentando minha curiosidade,qual fim terá Eunásio?

    ResponderExcluir