ATENDIMENTO PERSONALIZADO
-
Falta um número. - Eunásio disse em voz alta enquanto relia pela terceira vez a
mensagem que recebera: "Para
desbloqueio do seu cartão e troca da senha padrão, ligar para o telefone
222-3333" .
-
Senhor? - Kellerson abandonou as palavras cruzadas que fazia e agora estava em
pé ao lado dele. Eunásio nem percebeu a aproximação do rapaz marcado de
espinhas vermelhas enfeitando sua cara.
-
Não é nada - disse o conferente, dobrando o papel e escondendo-o na palma da
mão. O contínuo deu de ombros. Ele tinha uma pequena pasta debaixo do braço e
com passos rápidos saiu do escritório.
"Agora tá claro que isso tudo é armação. Querem
desviar meu foco das planilhas de pagamento de todo jeito. Enquanto eu ficar
aqui matutando de um cartão que nunca pedi, se cria um véu e esconde os erros
que eles cometem. E não cumprindo minha função, acabo parando no olho da rua. Com
certeza agiram dessa forma com o antigo conferente. Armaram tanto pra cima do coitado
que acabou tendo um piripaque e agora está em casa encostado. Mas se pensam que
também vou baixar a guarda, eles estão muito enganados. Eunásio pensou, com
raiva daquela brincadeira sem graça. Ainda
não sei como criaram esse cartão; é provável que compraram de alguma loja que
vendem coisas para enganar trouxas. Só pode ser isso. Só que como dizem, nenhum
crime é perfeito. Nessa ansiedade de sacanear, acabaram cometendo um erro
primário. Esqueceram de botar mais um número no telefone que inventaram. Mas deixa
quando eles vierem do almoço. Vou acabar com essa palhaçada!"
Não
teve que esperar muito tempo. Menos de dez minutos os quatro chegaram juntos e
cada um foi para sua mesa. Eunásio disfarçava, simulando que estava
compenetrado em um relatório de compras, mas seus olhos ampliados pelas grossas
lentes dos óculos corriam sorrateiramente por toda sala. Maurílio parecia
concentrado com alguma coisa no computador. Se estava preparando a folha de
pagamento dos peões ou assistindo um vídeo pornô, Eunásio não sabia.
Mas desconfiou do sorriso malicioso estampado naquele rosto com uma sombra
azulada de barba feita enquanto espremia os olhos no monitor; com certeza, coisa
boa não era.
Atrás
da mesa de Maurílio, Eurico, um sujeito magro e ossudo, discutia com alguém
pelo celular que agarrava com uma mão com estufadas veias azuis. Seu comprido
pescoço vermelho também tinha um par de veias azuis que pareciam prontas para
explodir enquanto ele soltava perdigotos na tela do seu computador a cada frase
sussurrada temperada de ódio. Desde que entrou na firma, Eunásio nunca viu
Eurico sem aquele celular colado na orelha e discutindo com alguém. Imaginou se
Eurico tomava banho com o celular e dormia com ele. Riu baixinho com a imagem
que criou.
A
mesa de Birinha ficava ao lado a do Maurílio, mas quase não sentava ali.
Normalmente puxava uma cadeira e sentava ao lado de Xuvisquem. Mal chegaram do
almoço, discutiam da última partida do Flamengo e dos erros de arbitragem que
prejudicaram o time. Enquanto Birinha esbravejava, Xuvisquem sussurrava,
concordando com o amigo. Logo em seguida o novo tema em debate era sobre as novas
garotas que frequentavam o Clube Cinco
de Julho e depois o tema foi falta de
dinheiro. As discussões mudavam de repente mas Eunásio notou que único assunto
que nunca discutiam era das tarefas que tinham que fazer na empreiteira.
A
porta abriu de repente e Vandilson atravessou a sala sem falar com ninguém. Atrás
dele Andrezinho vinha quase correndo. Pela janela de vidro que separava a sala
do patrão, Eunásio viu André, o eterno puxa-saco, tagarelando e ao mesmo tempo
gesticulando os braços para um Vandilson entendiado, sentado na sua grande
cadeira de couro, que enquanto o ouvia, tamborilava uma caneta na mesa.
Um deles... Ou todos juntos...
Agora desmascaro eles...
Eunásio
empurrou o relatório para o lado, estendeu o braço e pegou o telefone fixo.
Discou o número zero e quando ouviu o som contínuo da linha, teclou os números
da estranha mensagem.
Me sinto um completo idiota. Daqui
a pouco um deles vai cair na gargalhada e vai acabar se entregando.
-
Estranho - Eunásio disse de propósito em voz alta e aparentando curiosidade. - Como
vou desbloquear meu cartão de crédito se o número que me passaram está faltando
um número?
Eunásio
ficou em silêncio enquanto em uma das mãos segurava o fone e a outra mantinha o
indicador suspenso em cima das teclas do telefone fixo. Esperou para ouvir as
risadas e indiretas dos colegas, mas notou, zangado, que ninguém prestou
atenção no que ele tinha falado. Continuavam agindo da mesma forma como quando
chegaram do almoço. O ignorando completamente.
Ah, é? Estão querendo que eu ligue.
Vou fazer a vontade deles.
Eunásio
teclou os sete números já sabendo de antemão que o único som que ia ouvir seria
o sinal de ocupado.
-
222 - enquanto teclava dizia os números em voz alta. - 3333 - Para sua
surpresa, ouviu o som do sinal chamando.
Como é que pode?
Atenderam
no primeiro toque.
-
Cartão de crédito Infinito, em que posso ajudar? - Ouviu uma voz masculina no
outro lado da linha.
Sentiu
a mão que agarrava o fone tremendo. Como era possível? Mentalmente contou os
números, confirmando que eram apenas sete. Será que era daquelas ligações
gratuitas?
-
Alô... - Eunásio soltou um fiapo de voz.
Ouviu
a voz masculina dizendo:
-
Atendente Lucian Belmar, pois não.
Sentiu
a garganta seca e uma súbita tontura. Bagos de suor deslizavam pelo seu rosto e
encharcavam o colarinho da sua camisa social. Seus colegas do escritório
continuavam nos seus afazeres e na sala do patrão Andrezinho mostrava uma
revista para um agora interessado Vandilson que folheava as páginas avidamente.
-
Alô - disse Eunásio novamente. - Quem é que está falando?
-
Atendente Lucian Belmar - repetiu a voz
do homem, com paciência - Posso ajudar o senhor em alguma coisa?
Eunásio
respirou fundo. Mesmo com a temperatura glacial que fazia na sala por causa do
ar-condicionado, rios de suor empapava suas costas, colando a camisa no corpo.
-
Recebi um cartão de crédito por engano - Eunásio disse.
O
atendente Belmar retrucou com uma voz calorosa:
-
Impossível, senhor.
- Tanto que não é impossível que
recebi duas vezes um cartão que nunca pedi.
- Tem certeza que o senhor não
pediu?
- Acabei de falar isso.
- O cartão está com o senhor?
- Está - Eunásio replicou, tonto.
- Aqui na minha frente.
- Como é o seu nome? - Perguntou o
Atendente Belmar, com a voz soando gentil.
- Eunásio Pindorello.
- Aguarde só um momento. Vou
verificar no sistema.
Eunásio achou que ouviria a
gravação de uma irritante música enquanto ficaria plantado com o fone na orelha
durante uns cinco minutos, mas o que ouviu mesmo foi um farfalhar de folhas
sendo viradas, como se fosse um caderno.
Caderno em espiral, pensou.
Enquanto chegava no outro lado da
linha o som de páginas sendo viradas, Eunásio espiou Maurílio. O sujeito
barrigudo e peludo tinha se levantado e agora abria e fechava as gavetas do
arquivo catando pastas separadas por ordem alfabética e juntando algumas consigo.
Birinha estava em pé com as mãos nas
costas ao lado da grande janela reclamando que não via nenhuma mulher bonita no
pátio do estaleiro.
- Aqui no estaleiro, acho que só
Lindinha se salva... - lembrou Eurico, refestelado na sua cadeira e com as
pernas esticadas sobre sua mesa atulhada de papéis com o celular colado na
orelha. Ouviu alguma coisa e disse: - Não, meu amor, estou falando com Birinha.
É, eu falei que só você, minha lindinha, que me salva. - Eurico soltou um
sorriso e piscou para Birinha, que contribuiu a piscadela.
- Nem essa salva mais - lamentou
Xuvisquem com sua tranquila e macia voz. - Tô sabendo que ela anda saindo com
Zé Ducão.- Ante a expressão surpresa de Birinha, continuou: - Não, irmão, você
não ouviu mal. Ducão, o encarregado de manutenção. O que fica espalhando propaganda
enganosa de que tem três pernas. Quando me disseram, juro que no início não
acreditei. Fiquei pensando comigo mesmo, não é possível que uma menina tão
bonita ia se envolver com um cara como aquele. A menina, além de linda, é de
uma simpatia fora de série, e o Ducão a gente já conhece como é. Quando Andrezinho me contou que tudo era
verdade, fiquei de cara. E pra completar ainda vi aquele piteuzinho saindo da
Renave de mãos dadas... Captaram? De mãos dadas com aquele ogro de dois metros
e com cara de psicopata.
Mesmo carregando mais de dez
pastas nos braços, Maurílio prestava
atenção no que Xuvisquem falava. Quando chegou na sua mesa abriu os
braços e as pastas caíram sobre outras que já estavam ali.
- A Bela e a Fera - Maurílio
silvou enquanto voltava para o arquivo.
- Pode levar fé no que vou falar -
Birinha disse com raiva. - Essa garota só tem pose. Metida a gostosa e difícil.
Não é por que mostra os dentes que é simpática. Ela não vale nada, é igual a
uma nota de três reais.Nem de graça quero aquela boceta.
- Não desdenha o que não pode
comprar - Eurico riu. - Fala isso porque a menina nunca te deu mole.
- O negócio é que ela gosta da
terceira perna do chefe de obras - Maurílio gargalhou. Ele tinha o cotovelo apoiado
na gaveta aberta do arquivo e participava da conversa com os olhos brilhando. -
Ela é daquele tipo que morre de tesão com peão de obra. Se o cara tá usando
macacão sujo e capacete, aí mesmo que ela baba. Quem trabalha no administrativo
não significa porra nenhuma pra ela.
- O cara tem que ter calo na mão -
calculou Xuvisquem. - E tem que tá fedendo quando fica em cima dela...
- E adorar chupar um pau sebento -
Maurílio dobrou de tantas gargalhadas.
Enquanto aguardava o retorno do
atendente Belmar, Eunásio ouvia aquela conversa ao seu lado. Não acreditava que
aquela linda morena que tinha um exuberante sorriso estivesse saindo com Zé
Ducão. Era o mesmo que misturar água com azeite. Mas, ora bolas, e se estivesse
saindo? A vida era dela. Não tinha que dar satisfação para ninguém. Nessa vida
tem gosto para tudo.
- Seu Eunásio Pindo? - Ouviu a voz
do atendente no outro lado da linha.
O conferente sentiu os dedos
contraindo o aparelho colado no seu ouvido:
- Estou na linha.
A voz do atendente era gentil:
- Mais uma vez o cartão Infinito agradece
pela sua preferência. O senhor pretende trocar a senha do cartão?
Eunásio tinha um bolo comprimindo
sua garganta.
- Droga! Não pedi nenhum cartão.
- Ah,sim, entendi, o senhor
prefere permanecer com a senha padrão que é zero, zero, zero e zero. Quatro
vezes zero.
- Não foi isso que disse.
Comuniquei que não...
- O senhor pode utilizar o cartão
em qualquer banco de autoatendimento, como também em compras em lojas,
supermercados...
- Belmar? Seu nome é Belmar?
- Lucian Belmar, às ordens. O
senhor prefere que eu o chame de senhor ou de você?
- Prefiro nada. Quero que me
explique só uma coisa. Que empresa é essa que manda uma correspondência sem
remetente e ao invés de mandar pelo correio entrega em mãos? E que sistema é
esse que tudo é anotado num caderno? Que brincadeira é essa?
- Bem, senhor, a data de virada do
seu cartão é todo dia dezoito, e a fatura é para todo dia cinco do outro mês.
Está bom para o senhor?
- Não ouviu nada do que falei
agora? - Nervoso, Eunásio sentia o coração disparando.
- Entendi - disse o atendente
Belmar em uma voz compreensiva. - O senhor prefere que a data da fatura seja
todo dia dez de cada mês. Posso alterar aqui no sistema...
- Caderno - rugiu Eunásio,
impotente.
- Já modifiquei a data da fatura.
Mais alguma dúvida, senhor?
- Não quero nenhum cartão -
Eunásio sabia que se não controlasse os nervos, podia ter um troço qualquer.
- O senhor já falou isso antes. -
A voz do homem era paciente, como se estivesse falando com uma criança de cinco
anos. - E já anotei no sistema. A senha do cartão é o zero, zero, ze...
- Me escuta!
No escritório os colegas
continuavam contando suas mentiras, ignorando-o completamente. Até Kellerson,
que chegara da rua, juntou-se ao grupo. E na sala privativa do patrão,
Andrezinho mostrava outra revista para um Vandilson sorridente e exalando
luxúria dos olhos.
- Seu Eunásio Pindo, nossa empresa
espera que faça bom uso do seu cartão de crédito.
Sentiu que perdia o resto da
paciência com aquela voz robótica.
- Meu amigo - Eunásio puxou forças
para não perder o fiapo de controle. - Pela última vez vou falar. Eu. Não.
Pedi. Porra.Nenhuma. De. Cartão.
- Não é isso que o sistema me diz
- Era impressão sua ou a voz do atendente Belmar agora soava irônica?
E mais uma vez, que
sistema era aquele que era anotado em um caderno?
- Dane-se o sistema. Vocês erraram
de cliente. Mandaram um cartão para mim, mas que deve ser de outro Eunásio.
- Nossa empresa tem como meta
nunca cometer erros.
- Mas sempre tem uma primeira vez?
Não conhece essa frase? Dessa vez sua empresa errou. Como está escrito meu
sobrenome?
Novamente ouviu o som de páginas
sendo viradas.
- Eunásio Pindo. - Respondeu o
atendente, a voz soando cansada.
- Só Pindo? - Ali estava o erro. -
Mais nada? É isso que tô tentando te explicar. Sei que não é culpado dos erros
cometidos em outro setor, mas aí está a prova que...
- Senhor, seu nome completo é
Eunásio Pindo... - Foi impressão sua ou notou uma leve hesitação no tom da voz
do atendente Belmar?
- Viu, só não entendi ainda o
porquê de entregar a correspondência em mãos no meu trabalho, já que ninguém
sabia que eu tinha...
- ... Pindorello. Eunásio
Pindorello - completou o atendente Belmar, agora soando com enfado.
Eunásio engoliu em seco.
- Não falou que era só Pindo?
- Disse o que está escrito no seu
cartão. Seu sobrenome é grande, por isso foi reduzido.
- Bem, quero então cancelar esse cartão que
nunca pedi.
- O senhor quer anotar o número do
protocolo ou não?
- Não quero saber de protocolo
nenhum, só quero...
O som da voz agora soou eufórica:
- Seu cartão foi desbloqueado e
sua senha é a padrão. Agradecemos pela sua ligação. Qualquer dúvida o senhor
pode nos contactar novamente.
- Ei, espera aí, não é isso, não posso ser dono do cartão, meu
nome está sujo no...
Tu tu tu tu tu - O atendente Belmar interrompeu a ligação.
Eunásio pousou lentamente o fone
no gancho e se ajeitou na cadeira, alto e ereto, tonto e com o semblante
fechado. O falatório corria solto ao seu lado mas ele não entendia nenhuma palavra
dita.
Novamente pegou o cartão de
crédito de cor preta com detalhes em prateado e passou a ponta do dedo
indicador sobre os relevos. Ainda se sentindo desconcertado, guardou automaticamente
o cartão no bolso da camisa e suspirou
Isso não tá acontecendo comigo, pensou enquanto ajeitava o
relatório para conferir.
Ouviu uma sonora gargalhada. Não
sabia de onde veio aquela gargalhada, mas com certeza estavam rindo dele.
Baixou a cabeça e ajeitou os
óculos.
Deixa pra lá. Eles ganharam. Não
falaria mais nada a respeito do cartão. Sua defesa agora eram os erros dele nas folhas
de pagamento. Vamos ver quem vai rir por último nessa brincadeira sem graça.
Continua...
No próximo capítulo
É SEMPRE BOM JANTAR COM A FAMÍLIA
Rogerio de C. Ribeiro
A cada capítulo,uma emoção... aumentando minha curiosidade,qual fim terá Eunásio?
ResponderExcluir