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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O CARTÃO CAPÍTULO 4

APROVEITANDO O HORÁRIO DE ALMOÇO

- O almoço está na mesa - Tia Milu avisou, enquanto organizava os talheres nos devidos lugares. A pequena mesa na também pequena cozinha tinha sido forrada com uma toalha de plástico axadrezada nas cores vermelho e branca e havia dois pratos virados para baixo. No fogão de quatro bocas, o feijão borbulhava na panela de pressão e a panela de arroz branco exalava um adorável aroma; ao lado das panelas uma travessa de prata com carne assada e batatas aguardava para ser levada na mesa. Da pequena janela da cozinha a claridade do sol do meio-dia iluminava o ambiente. Tia Milu era magra, de tamanho médio, de cabelos prateados presos em um coque. O rosto dela lembrava muito as fotos de avós dedicadas que contavam histórias para os netos. Tia Milu arrumou a colher e a faca cega ao lado do prato do seu sobrinho, deu uma espiada na direção da sala e chamou novamente: - Vem logo, querido, senão a comida esfria.
- Não quero comida. Quero pão com ovo estrelado.
- Meu queridinho, titia fez uma comida tão gostosa!
- Não quero!
Tia Milu desligou o fogo da panela de feijão e foi para a sala. Um menino magro, de óculos com lentes grossas para sua miopia de seis graus, estava sentado no sofá com um gibi da Turma da Mônica colados na cara.
Tia Milu aproximou-se em passos miúdos, desviou-se da pequena mesa abarrotada com revistas em quadrinhos, sentou-se com as costas retas e levemente passou longos dedos nos anéis encaracolados dos cabelos crespos do menino.
- Querido, você não pode passar a vida inteira só comendo pão com ovo. Está em uma fase que seu corpo necessita de proteínas.
O menino baixou o gibi que lia, virou o rosto encovado e por detrás do novo par de óculos, seus olhos cinzentos aumentados pelas grossas lentes pareciam zangados.
- Eu. Quero. Pão. Com. Ovo. - disse, pausando lentamente as palavras, e novamente levantou o gibi e seu rosto ficou escondido atrás da revista.
Verdade seja dita, Tia Milu era muito paciente. Ela suspirou, tirou os dedos dos cabelos do menino e se levantou. Fez mais uma tentativa, e ante a mudez do menino de seis anos, deu as costas, voltou para a cozinha e disse:
- Querido, com gema mole ou dura?
Fazia bastante tempo que não pensava em Tia Milu, por isso assustou-se com aquela inesperada lembrança. A impressão foi que aquele almoço tivesse acontecido ontem e não há trinta e oito anos. Eunásio sorriu com essa memória afetiva de quando tinha seis anos, que a única preocupação que tinha era apenas visitar a banca de jornais do seu Amarildo com tia Milu e pegar emocionado os novos números da Turma da Mônica, Pato Donald e Disney Especial. E quando chegava de noite sua tia preparando um delicioso sanduíche de pão com ovo estrelado.
Pensando melhor, talvez tivesse se recordado desse dia por que agora estava  sentado em um  banco de cimento da praça do Barreto enquanto desembrulhava um papel de pão manchado de margarina seu almoço, um sanduíche de ovo frito.
 Eunásio aproveitava seu horário de almoço e ia até a Praça do Barreto, que ficava próxima ao estaleiro Renave, onde relaxava sentado em algum banco de cimento, observava o movimento do tráfego que vinham da Avenida do Contorno enquanto comia seu sanduíche. Mesmo que ao redor da praça tivessem vários estabelecimentos que vendiam refeições baratas, ele preferia saborear um pão dormido com ovo frito. O vale refeição que recebeu no segundo dia de trabalho nem estava mais com ele; entregara nas mãos de Lizaura para usar no mercado do bairro.
Com sacrifício e trabalho ia superar essa fase que já durava três anos. O tempo que ficou desempregado lhe serviu como uma pesada lição. Esses anos o afetaram de várias formas: Adquiriu baixa estima que nunca tivera antes, seu orgulho foi diluído e sua mulher começou a humilha-lo. Não só ela, mas toda família  o desprezava. Tudo por causa da alta qualidade de vida que tinham e que num piscar de olhos não tinham mais. Os domingos que almoçavam fora em churrascarias foram trocados por almoços em casa ou eventualmente no apartamento de Ambrósio; viagens que faziam para a Região dos Lagos ou para a serra ficaram apenas em fotos guardadas numa caixa, agora esquecidas dentro do armário da área de serviços; a facilidade de locomoção de um lado ao outro no Palio da empresa  foi trocado pela dificuldade de ônibus lotados; a tevê a cabo com todos canais se contentou em ser uma tevê com canais abertos e imagens fantasmagóricas. As roupas que usava atualmente eram as mesmas de três anos atrás, e cada furo ou rasgo era remendado por ele mesmo. A visita semanal ao salão de cabeleireiros que Lizaura fazia para dar um tom novo nos cabelos... Bem, foi a única coisa que não mudou em nada nesses três anos.
Enquanto Eunásio gastava sola de sapato visitando empresas e entregando seu currículo que provavelmente eram destinados às lixeiras, Lizaura administrava a casa e os filhos com a poupança conjunta que Eunásio investiu durante vinte anos visando um conforto maior quando  aposentasse. Enquanto ia de uma empresa a outra debaixo de um inclemente sol que torrava seus miolos, Lizaura utilizava os rendimentos da poupança com necessidades básicas que julgava serem primordiais: compra de três aparelhos de ar-condicionado para combater o eterno verão carioca, o cuidado que Valdo e Cininha nunca estivessem com suas carteiras vazias quando iam à baladas, festas e um passeio em Angra juntos com o primo Pedrinho. O momento infinito que Eunásio ficava sentado com outros candidatos de emprego aguardando sua vez na entrevista era também o momento infinito que Lizaura, com a cabeça enfiada no secador no cabeleireiro, ansiosa aguardava o resultado para a nova cor dos seus cabelos.
No dia que soube que a poupança chegara a um nível crítico, Eunásio quis saber como aquilo tinha acontecido, mas Lizaura, num rompante autoritário e com os cabelos coloridos de um azul brigadeiro, gritou:
"Só você é culpado por essa pindaíba que estamos passando, seu idiota. Se tivesse roubado mais, eu não ia ficar aqui contando centavinhos pra botar comida dentro de casa. Eu e as crianças não somos culpados pela sua burrice. Aprenda agora e bota a mão na consciência, Eunásio. Deu uma de cagão e agora quer cantar de galo dentro de casa. Comigo não! Só você que tem culpa dessa miséria que a gente tá passando, só você!"
Por mais que tentasse se defender das injustas acusações, suas palavras flutuavam no ar porque simplesmente Lizaura dava as costas para ele, pegava uma das várias bolsas que tinha pendurados no cabideiro do quarto e saía para gastar, ou como ela mesma frisava, acalmar sua fúria enquanto tingia seu cabelo com outra cor.
Abocanhou um grande pedaço de pão dormido com ovo e mastigou lentamente, sentado ereto no banco de cimento. Fazia uma tarde agradável, com o sol cercado por nuvens brancas e uma brisa agradável que vinha da Baía da Guanabara. A praça era modesta; tinha dois balanços e um escorrega para crianças, um coreto que atualmente abrigava alguns mendigos e usuários de droga nas noites e seis bancos de cimento. Mesmo com o abandono, era o lugar que ele ia para comer. Nesse horário a praça vivia deserta a não ser por alguns jovens uniformizados do colégio municipal que às vezes apareciam para conversar, fumar um baseado ou namorar. Eunásio observou um garoto de uniforme que devia beirar os dezesseis anos ou menos, com os cabelos compridos presos num rabo de cavalo e leve penugem que devia chamar de cavanhaque espalhada por um queixo quadrado. Ele caminhava de mãos dadas com uma garota de cabelos crespos e encaracolados, com enormes brincos em forma de coração vermelho balançando para frente e para trás a cada momento que ria e jogava a cabeça para trás com alguma coisa que o rapaz dizia no seu ouvido. Os dois sentaram em um banco em frente e enquanto Eunásio, pensativo,  mastigava seu sanduíche seco, lançou um olhar distraído nas pernas da estudante. Ela também usava uniforme branco, com saias pregadas azul e calçava sapatos pretos e meias brancas que chegavam no joelho. Mas a saia, curta, subiu mais ainda quando ela cruzou as pernas e exibiu um par de coxas grossas cobertos com pelinhos claros. Imediatamente a mão do rapaz deslizou suavemente em cima da coxa acima e enquanto alisava suavemente com as pontas dos dedos, novamente sussurrava no ouvido dela. E a garota negava balançando a cabeça, mas era  frágil a negativa, porque enquanto afastava a mão boba de cima da sua coxa, ria alto, jogando a cabeça para trás e sacudindo freneticamente os brincos de coração. Insistente, como uma aranha, a mão do rapaz voltava para o ataque, com a boca colada no ouvido dela.
Ah, os jovens, Eunásio divagou, mastigando lentamente o pão com ovo.
Um dia também foi jovem, também namorou no colégio. Mas isso parecia que tinha acontecido há séculos, como outra vida. Eunásio empurrou o último pedaço de pão, agora sem nenhum vestígio de ovo boca adentro, e meditou sobre a idade daquele casal que sentava na sua frente enquanto mastigava lentamente. Deviam ter a idade dos seus filhos. Teve uma pontada de ciúme quando imaginou sua filha saindo do colégio com um namorado novo, também sentada num banco de cimento de uma praça qualquer e sendo apalpada nas coxas.
Quase se engasgou com o pedaço de pão que mastigava e afastou aquela súbita e sórdida imagem da cabeça. Tossiu, bateu com o punho direito no peito e puxou uma lufada de ar. Notou o casal da frente olhando para ele. Pela expressão do rapaz, não parecia estar gostando muito da inoportuna plateia e súbito ficou de pé e puxou a menina pelo braço para junto de si. Antes de darem as costas, o garoto de barbicha ergueu o dedo médio para ele. Eunásio não conseguiu segurar o sorriso. Provavelmente o casalzinho suspeitaram que ele fosse tarado, daqueles que passavam as tardes nas praças aliciando jovens inocentes. Não se importou com que eles pensavam dele , mas por precaução também se levantou do banco antes que o jovem voltasse com alguns amigos para tirar satisfações.
Caminhou devagar com as duas mãos enfiadas nos bolsos da velha calça social, atravessou a praça até que passou pelo portão de grades e parou na calçada. O estaleiro ficava no outro lado da pista dupla e para atravessar a avenida era uma aventura, porque não tinha passarela e nem sinal de trânsito. Precisava de uma grande dose de paciência para aproveitar a hora certa que afrouxasse o fluxo de carros, caminhões e ônibus para atravessar com segurança. Às vezes a sorte sorria e conseguia  atravessar as duas pistas em menos de cinco minutos, mas tinha vezes que ficava parado no meio-fio mais de quinze minutos esperando o momento exato que poderia atravessar e não correr o risco de ser atropelado.
Nesse dia teve sorte, havia um congestionamento e os veículos,parados, torravam motoristas e passageiros debaixo de um inclemente e furioso sol . A brisa que sentiu na praça não existia ali no asfalto. Eunásio driblou os carros parados, viu um motorista de ônibus com os cotovelos apoiados no volante enquanto enxugava o rosto ensopado com uma flanela branca  e conseguiu pisar na calçada do outro lado. Ao lado dos portões duplos da Renave havia o boteco Filho da Mãe, que Zulmiro, ex-funcionário do estaleiro, montou depois que perdeu o braço esquerdo nas máquinas. Era um negro parrudo, que gargalhava com qualquer piada que ouvia, os cabelos brancos apesar de ter menos de cinquenta anos. O rosto simples e risonho enganava aqueles que não o conheciam. Se alguém tentasse dar um calote depois que bebesse, esse alguém se arrependeria em conhecer a ira de Zulmiro. A maioria dos fregueses eram grande parte os operários que largavam os expedientes para um jogo de sinuca, cervejas, traçados e partidas de suecas, e como todos eram frequentadores assíduos, a possibilidade de calote era zero.
Um dos frequentadores que batiam ponto todas tardes era um funcionário da empreiteira que Eunásio já vira ao lado de Andrezinho. Era o encarregado dos peões, José Durvalino, conhecido pelo apelido de Zé Ducão. Desde o primeiro dia que Eunásio viu Ducão no escritório, sentiu uma certa antipatia pelo jeito do peão. Era um homem alto, mulato de olhos verdes, com um bigodinho aparado nas pontas e que sujavam a parte superior dos grossos lábios. Eunásio soube por Andrezinho que Ducão era o homem de confiança de Vandilson no meio dos operários. Com ele não existia corpo mole e nem preguiça; tarefas eram para serem feitas dentro do prazo estipulado de qualquer jeito. Apesar de usar um uniforme que sempre vivia sujo, depois do expediente aparecia no Filho da Mãe bem vestido, com um colar de argolas que pareciam de prata e uma pulseira de correntes do mesmo tipo. Era o único que tinha mesa cativa no boteco; ali juntava os amigos em partidas de sueca que valiam cerveja ou então partidas de sueca valendo dinheiro.
Eunásio viu Zulmiro em pé na porta do boteco conversando com um moreno sentado em uma mesa com um copo de cerveja na mão, acenou e o proprietário do Filho da Mãe retribuiu. Atravessou os portões duplos da Renave; viu a barcaça que vinha da ilha do Vianna ancorando no cais e desembarcando, misturados, engenheiros, administrativos, operários de macacões e capacetes coloridos, gerentes de empreiteiras e visitantes.   
Passou pela guarita da entrada e cumprimentou com a cabeça Heron,  segurança da tarde que ficava isolado num cubículo de pedra e cimento e com telhas de amianto. Um pequeno ventilador aliviava o calorão que devia fazer ali dentro. Por um instante pensou em perguntar a Heron sobre o envelope que recebera. Como a carta não viera pelo correio, com certeza foi entregue por alguma pessoa. Chegou a dar um passo mas antes que se aproximasse da guarita, parou. Lembrou-se que a correspondência lhe foi entregue de manhã, e na guarita pela manhã ficava outro segurança, o Malaquias.
Sentindo como se tivesse um maçarico direto na sua cabeça, apressou os passos em direção do prédio de quatro andares que reuniam várias empreiteiras. Esbarrou em um sujeito engravatado com uma pasta na mão e com um celular na outra que reclamava com alguém do calor infernal em pleno mês de junho, passou por Andrezinho que esperava a próxima barcaça para a ilha acompanhado de Zé Ducão, que vestia um macacão imundo e que segurava o capacete branco de encarregado, adentrou no pátio cimentado que tinha a escultura de um navio na frente da portaria e entrou no pequeno edifício que trabalhava. Na entrada uma grande mesa com ramais telefônicos três jovens de uniforme verde claro atendiam  visitantes. Ao lado delas um segurança armado montava guarda ao lado das quatro roletas eletrônicas. Ali pelo menos tinha ar-condicionado. Eunásio lançou um furtivo olhar para uma das funcionárias,  uma morena de cabelos encaracolados, de lábios carnudos e úmidos e que quando sorria, exibia uma fileira perfeita de dentes brancos. No crachá estava escrito seu nome: Linda Flores. Realmente, o nome combinava com a pessoa. Eunásio não sabia que idade ela tinha, mas calculou que tivesse mais ou menos uns vinte e cinco, vinte e seis anos. Era a mais simpática das atendentes e única que o cumprimentava e sorria toda vez que o via.
Em seus delírios, Eunásio se imaginava jantando em um restaurante de frutos do mar com Linda de acompanhante e um garçom servindo em gigantescas taças de cristais vinho tinto, enquanto um grupo de violonistas tocavam uma música romântica exclusivamente para eles. E nesse devaneio imaginava ela rindo das piadas que contava, saboreava cada palavra que ele dizia, se excitava com cada carícia que ele fazia... E quando ele passava seus ósseos dedos descarnados pelo braço moreno ela se arrepiando...
Sonhos... que nunca seriam realidade. Mas de vez em quando era muito bom sonhar para fugir um pouco do mundo real.
- Boa tarde, Linda - Eunásio a cumprimentou enquanto passava seu crachá na roleta. O sinal ficou verde e ele passou.
- Boa tarde, seu Eunásio - respondeu a moça com um ligeiro sorriso.
Ele subiu um lance de escadas e caminhou pelo estreito corredor do segundo andar até o final. Depois de passar por várias portas fechadas, viu a placa MC OFFSHORE e entrou. Depois do calor causticante lá fora, a  sala gelada pelo ar-condicionado era bem vinda. Viu apenas Kellerson sentado na sua mesa concentrado nas palavras cruzadas.  As mesas dos outros continuavam vazias, inclusive a mesa de Vandilson na sua sala privativa.
Puxou a cadeira e quando sentou viu o envelope pardo fechado ao lado da caixa de correspondência. Antes que abrisse boca para falar, Kellerson se antecipou:
- Deixei esse envelope na sua mesa - disse ele com sua indefectível voz em falsete.
Eunásio pegou o envelope pardo e notou mais uma vez que não havia remetente, só o nome escrito "Eunásio Pindo."
- É normal que chegue correspondências duas vezes num dia só? - Perguntou enquanto rasgava a parte de cima do envelope.
- Não, nunca chega - comentou Kellerson.  - Heron  achou o envelope caído embaixo dos escaninhos. Malaquias deve ter deixado cair na hora que separava as cartas e nem percebeu.
O  envelope não tinha remetente, não tinha o carimbo postal, nem selo. Amanhã sem falta vou perguntar a Malaquias quem entregou esses envelopes. Dessa vez descubro quem é o engraçadinho que quer pregar essa peça em mim, pensou Eunásio, irritado.
Dentro do envelope havia um papel dobrado. Pegou e abriu-o por inteiro. Era uma folha pautada que foi arrancada de algum caderno, com as espirais rasgadas nas pontas. E mais uma vez estava escrito em uma caligrafia infantil, como se alguém quisesse disfarçar sua própria letra:
"Para desbloqueio do seu cartão e troca da senha padrão, ligar para o telefone 222-3333."

Continua...

No próximo capítulo:
ATENDIMENTO PERSONALIZADO

Rogerio de C. Ribeiro


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