A
CORRESPONDÊNCIA
-
Para o senhor - Kellerson, contínuo da empreiteira MC Offshore, separara um
envelope pardo de outras correspondências que tinha nas mãos. Era um jovem de
dezessete anos, alto e espigado, de cabelos desgrenhados que cobriam a testa
até as sobrancelhas e com a cara decorada de espinhas. Estava parado atrás da
cadeira de Eunásio, que tinha a cabeça enfiada em uma montanha de relatórios
espalhados sobre sua mesa.
Concentrado,
Eunásio continuava na conferência dos pagamentos dos
operários, sublinhando valores errados e batendo rapidamente com o
dedo indicador nas teclas da antiga calculadora Sharp. Quando sentiu que era
cutucado no ombro direito levantou a cabeça e piscou várias vezes seus olhos
arregalados, aumentados ainda mais pelas grossas lentes dos óculos.
-
Hã? O que disse? - Perguntou enquanto ajeitava as costas no encosto da cadeira.
Impaciente,
Kellerson estendeu o envelope.
-
Para o senhor. - Repetiu, com certo mal-humor.
Eunásio
pegou o envelope pardo das mãos do rapaz e segurou com cuidado como se pudesse
queimar sua mão. Tinha o tamanho de um papel ofício e estava escrito
à mão com esferográfica azul: "Aos cuidados do Sr. Eunásio Pindo."
Curioso, olhou o verso notou que não tinha remetente. Colou o envelope no
ouvido e segurando na ponta, balançou duas vezes.
-
O que pode ser? E por que mandaram esse envelope para cá? - Eunásio
estranhou.
Ele
trabalhava nessa empreiteira há menos de um mês. Além dele e do contínuo, mais
cinco pessoas dividiam o escritório. Sua mesa ficava ao lado do bebedouro e do
banheiro, enquanto na outra extremidade ficavam quatro mesas, perfiladas em
pares lado a lado dos quatro colegas e na extremidade uma parede de compensado
com grande vidro separava a sala do seu patrão. Sua função era conferir quanto
cada peão iria receber depois dos vários vales, adiantamentos, faltas, horas
extras que faziam, e por isso não era muito bem visto pelos colegas por causa
do seu perfeccionismo e instinto de achar erros nas somas dos pagamentos.
Tá com cheiro que é coisa
do Maurílio - imaginou Eunásio.
Observou
Maurílio na sua mesa com o canto dos olhos. Era um sujeito alto, parrudo, com
grossos braços peludos e mãos de dedos nodosos; sua cabeça era pequena em
proporção do corpo e a sombra de uma calvície surgia nos cabelos crespos e
pretos. Por mais que ele fizesse a barba todos dias, tinha um ar sujo no queixo
quadrado. Com várias pastas de arquivo abarrotando a frente do monitor do
computador, mostrava uma expressão séria e compenetrada com o serviço. Tudo
fachada, Eunásio acreditava, no pouco tempo que trabalhava ali sabia que o
sujeito adorava inventar brincadeiras de mau gosto nas pessoas e quando alguém
caía nas suas pegadinhas, mantinha a aparência neutra, como se fosse mesmo um
homem respeitável. Eunásio ainda não tinha sido vítima dessas brincadeiras
desde que entrara na empresa, talvez pela hierarquia que exercia, mas sempre
tinha uma primeira vez - Aposto que vou
achar um bilhete me sacaneando...
Kellerson
continuava parado em pé ao seu lado, talvez esperando que ele abrisse o
envelope. Eunácio o fuzilou com os enormes olhos que aumentavam mais por causa
das grossas lentes e o jovem se afastou, meio contrariado.
Vou abrir, mas se for
sacanagem do Maurílio, vou fingir que acho engraçado. Talvez assim melhore meu
ambiente nesse escritório. - Seu ambiente ali não
era dos mais confortáveis, principalmente pelo fato da sua função de
conferente.
Rasgou
o envelope de ponta a ponta e jogou a tira de papel na cesta de lixo aos pés da
sua mesa e olhou o interior. Da boca escancarada , viuns que era um cartão.
Com
a ponta do indicador e o polegar, puxou o cartão de dentro do envelope e
curioso o analisou. Era um cartão de crédito comum, todo preto, com a numeração
dourada e com o nome grafado em branco: EUNÁSIO PINDO, e a validade: INDETERMINADO.
-
Mas que cartão é esse? Não pedi nenhum cartão de crédito ...
Girou
sua cadeira e observou mais uma vez que seus colegas do escritório continuavam
em suas mesas. O silêncio reinava absoluto na sala e o único som fraco que
ouvia era do ar condicionado. Ninguém estava rindo e nem cochichavam entre si.
Eunásio voltou a cadeira para o seu lugar e murmurou:
-
Como me mandam um cartão se meu nome está sujo no Serasa? - Novamente leu
o nome escrito e concluiu: - A não ser que seja outro Eunásio...
Mas
será que havia outro Eunásio em Niterói, e mais, um Eunásio Pindorello? Como o
sobrenome estava abreviado, provavelmente pudesse ser um Pindorama,
Pindomello...
E
o mais estranho de tudo que a correspondência fosse mandada para o estaleiro. A
não ser sua esposa e seu cunhado, mais ninguém sabia que ele trabalhava ali.
Um
erro. Com toda certeza enviaram o cartão para a pessoa errada. Outra coisa que
o intrigou foi que o envelope era daqueles comuns, que se comprava na
papelaria. Não havia postagem e nem remetente e alguém entregou em mãos na
portaria. Ainda achava que se tratava de uma brincadeira de mau gosto de
Maurílio ou de algum dos outros.
Ou talvez todos eles.
Abriu
a primeira gaveta da sua mesa e jogou o cartão lá dentro. Fechou a gaveta e
voltou para os relatórios. Tinha bastante trabalho para concluir e não podia
perder seu tempo com a origem daquele cartão.
Deixa pra lá. Uma hora
eles se entregam e descubro quem foi o autor dessa brincadeira sem graça.
******
No
dia seguinte chegou no escritório antes dos outros, o que era normal para ele.
Ligou o ar condicionado, passou um pano na sua mesa, puxou a cadeira e pegou um
maço de relatórios inacabados que deixara na caixa de lembranças no dia
anterior e quando ia ligar o computador, viu o cartão de crédito pousado ao
lado do monitor.
Quem foi que pegou na
gaveta? Não tinha ninguém quando saí do escritório...
Ele
era o encarregado de abrir e fechar o escritório todo dia. Tinha certeza
absoluta que não mexera mais na gaveta depois que guardou o cartão lá
dentro.
Pulou
da cadeira e serpenteou pelas mesas vazias até o refeitório. Abriu a porta e
viu que estava deserta. A cafeteira continuava desligada em cima da pía, no
mesmo lugar que deixara no dia anterior. Achou que ia surpreender Kellerson
fazendo suas palavras cruzadas, mas não havia nenhuma sombra do rapaz.
Retornou
para a sua mesa e pegou novamente o cartão preto. Dessa vez constatou que tinha
chip e nenhum nome de banco e nem de bandeira que o identificasse. Só a palavra
ILIMITADO na margem superior acima do seu nome. Ou do meu xará, pensou.
Quando
Vandilson, seu patrão, chegou no escritório, Eunásio decidiu conversar com ele.
Bateu na porta que separava a salinha dos demais e entrou.
-
Com licença - Eunásio fechou a porta atrás de si. Não queria que ninguém
ouvisse a conversa com o patrão. Mostrou o cartão e continuou: - Recebi isso
ontem, mas acho que foi um engano.
Vandilson
verificava algo no seu laptop e mal ergueu os olhos. Era mais novo que Eunásio,
mas já tinha os cabelos totalmente brancos e um grosso bigode cinza.
-
Hum... e daí? - Grunhiu, ainda focado na tela do laptop.
-
Daí que não pedi nenhum cartão de crédito - disse Eunásio, ainda de pé, já que
não fora convidado para sentar e não tinha muita intimidade com o patrão.
-
Vou perguntar de novo, e daí? - Dessa vez ele ergueu os olhos castanhos e frios
para o seu conferente. Pelo jeito que olhou, deu mostras que não tinha gostado
muito de ser interrompido no que fazia. Eunásio percebeu isso, mas precisava
tirar aquela dúvida, independente do humor do patrão.
-
Alguém mandou para mim por engano.
-
Devolve. - Vandilson respondeu entredentes e continuou fitando Eunásio com seus
gélidos olhos.
-
Não posso devolver, não tem remetente.
Vandilson
fechou o laptop e agora fuzilou o funcionário com olhos cruéis.
-
Eunásio, você foi contratado para conferir os erros que esses energúmenos me
aprontam, e não para debatermos sobre um cartão de crédito qualquer.
A
fama do patrão era conhecida no estaleiro. Paciência zero era seu lema. E
grosso na medida certa.
-
Só pensei que a empresa tivesse firmado com um banco...
Vandilson
largou uma inesperada gargalhada. Pegou um charuto de dentro da gaveta e
acendeu-o com um isqueiro Zippo. Deu uma tragada e soltou uma fumaça fedorenta
na cara de Eunásio.
-
,Adorei sua piada. Olha, pela sua cara de certinho não imaginava que fosse
comediante! - Os olhos risonhos mudaram de repente para irônicos. Havia
desprezo na sua voz. - Você não tem nem um mês na casa e já quer um cartão
fornecido pela empresa? Nunca trabalhou antes, Eunásio? Será que seu curriculo
é mentiroso? Não tá parecendo nem um pouco que foi contador durante vinte anos
naquela empresa fraudulenta. Ou melhor, parece sim, já que você se ferrou
naquela história toda...
-
É, eu sei... O senhor tem razão - Se arrependimento matasse, já estariam
rezando sua missa de sétimo dia. Pior que ser considerado patético era ser
considerado um perdedor nato. A menção que seu patrão fizera da antiga empresa
ainda mexia com ele.
-
Se sabe, pra que veio me perturbar? Volta pra tua mesa, faz o que tem que
fazer, porque eu tenho coisas mais importantes pra resolver do que perder meu tempo
falando idiotices com um empregado. Nunca mais entre na minha sala se não for
pra mostrar os erros que é pago pra detectar. Não faça que me arrependa de
tê-lo aqui comigo. Ambrósio garantiu que você não me traria nenhum tipo de
problema.
-
Sim, senhor, quer dizer, não senhor, o senhor não vai se arrepender jamais... e
nem meu cunhado - gaguejou Eunásio, que se afastou da mesa de Vandilson
caminhando de costas, com a cabeça virada para seus sapatos, até que esbarrou
na porta fechada. Saiu da sala murmurando desculpas pela intromissão.
Sentou
na sua poltrona sentindo que sua roupa fedia a charuto vagabundo. Decidiu que
não ia mais se preocupar com o cartão. Quebrou-o pelo meio e jogou na lixeira.
Tinha que voltar sua atenção para o trabalho. Não podia se dar ao luxo de ficar
desempregado agora, aos quarenta e quatro anos, casado e com um casal de filhos
que ainda moravam e dependiam dele. Jurou que só ia ficar focado nos erros dos
outros, afinal, como seu patrão falou, com seu curriculo manchado por causa da
antiga empresa que trabalhou durante vinte longos anos, não decepcionaria
Ambrósio por causa de um cartão de crédito que nem era seu.
Continua...
No
próximo capítulo: Relações de um casal à beira da falência.
Rogerio
de C. Ribeiro
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