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sábado, 27 de dezembro de 2014

O CARTÃO CAPÍTULO 6

COMO É BOM JANTAR JUNTO COM A FAMÍLIA


Grata a surpresa que teve quando chegou em casa e viu Lizaura arrumando a mesa da sala para o jantar; tinha tanto tempo que Eunásio não sabia mais o que era jantar junto com sua família. Enquanto tomava banho, podia escutar Lizaura cantarolando na cozinha, Valdo falando no celular e Cininha reclamando da programação da tevê. Quando chegou na sala todos o esperavam sentados na mesa.
No período que ficou desempregado se acostumou em jantar sozinho no sofá equilibrando o prato na mão e com a televisão ligada na frente enquanto Lizaura comia na pequena mesa da cozinha às vezes acompanhada por Valdo ou Cininha. Mas agora parecia que sua vida familiar voltava ao que era antes. Tudo graças ao novo emprego.
A cadeira na ponta da mesa foi reservada para ele. Desajeitado, sentou-se com as costas retas e no momento que pegou o guardanapo de pano esbarrou no copo de vidro vazio que balançou, rodopiou e caiu para fora da mesa. Valdo, que estava sentando à sua direita, ágilmente pegou o copo vazioo no ar.
Agora é a vez da bronca, Eunásio pensou.
- Isso acontece - Lizaura, sentada na outra ponta da mesa, comentou, indiferente.
- Quanta agilidade - Cininha se espantou.
- Ora - Valdo se gabou. - Não é a toa que sou o goleiro do time do colégio.
Eunásio estava estupefato. Ninguém comentou do esbarrão no copo. Ninguém ironizou o quanto ele era desastrado. Não, nada de ironias. Agiram como se aquilo fosse um acidente corriqueiro, normal.
Mas até ontem, se ele fizesse qualquer coisinha do tipo: Perguntar o que havia para o jantar; como foi seu dia na escola, filha?; você chegou de madrugada, filho; tropeçar na dobra do tapete; insinuar que a conta do salão de beleza chegara num nível estratosférico... Bem, em todos casos acima seria repreendido pela esposa, escarnecido pela filha e ouviria de Valdo que já tinha dezessete anos e era dono do próprio nariz. Agora, se tivesse esbarrado no copo, mesmo com a agilidade de Valdo e salvando Lizaura em varrer os cacos de vidro, bem, provavelmente seria expulso da mesa e ficaria sem jantar naquela noite.
Nesse momento, a cena beirava ao surreal. Valdo e Cininha conversavam amigavelmente como dois irmãos civilizados e o mais surpreendente... a televisão estava sintonizada no jornal e nenhum deles disputava o controle remoto para assistir uma partida de futebol ou um filme.
Mas o que o surpreendeu mesmo foi ter ouvido Lizaura, em pé com um prato vazio na mão olhando diretamente para ele e perguntando:
- Como está sua fome, Eunásio? Quer muito ou pouco - Lizaura apontou para as panelas em cima da mesma.
Aí já é demais, pensou Eunásio de queixo caído. Há quanto tempo que ela não fazia seu prato? Buscou na memória e concluiu: Nunca!
A comida era simples; arroz branco, feijão manteiga, carne assada recheada com calabreza, batatas coradas, salada de alface e tomates. Tudo delicioso. A cada garfada, Eunásio mastigava lentamente, esperando que aquele momento durasse o maior tempo possível; curtindo cada momento mágico desse jantar em família.
O som do toque de celular quebrou o silêncio reconfortador. Eunásio procurou de onde vinha o som; Lizaura sorriu (um sorriso cândido!), Valdo bebeu um gole de mineirinho e atacou seu prato, mudo.
Cininha pronunciou quando cessou os toques do celular:
- Avisei a Beto do nosso jantar. Vive pegando no meu pé...
Beto... O namorado da semana, Eunásio concluiu.
- Pai - Após esvaziar seu prato, Valdo falou. - Tio Ambrósio ligou hoje pra mim. Tá querendo que eu trabalhe no escritório dele em Bonsucesso.
- É mesmo? - Eunásio se espantou com aquela notícia. Não sabia se o espantava mais do fato de Ambrósio ter arrumado um emprego para o sobrinho que tinha fama de vagabundo ou de Valdo se mostrar interessado em trabalhar. Todos sabiam que o Ambrósio patrão era completamente tirano com seus funcionários.
- Sabe que o convite do tio tem um dedinho do Pedrinho - Cininha sugeriu. Havia uma ponta de maldade nas palavras.
- Que tenha, Cininha - Valdo se defendeu. - Pedrinho é mais que um primo. Considero ele como irmão.
- Irmão - Cininha riu.
Lizaura interveio.
- Chega, Cininha. Se Pedrinho interferiu ou não a favor do Valdo, isso não interessa. O importante é que Ambrósio está se preocupando com o futuro do sobrinho.
- Depois de tudo que ele fez com a gente - Cininha reclamou. Ela afastou o seu prato da sua frente e pegou o copo de refrigerante mineirinho. - Mãe, tio Ambrósio nunca olhou para a gente. A senhora é única irmã dele, e o que ele fez para ajuda-la? Nada. Simplesmente ignorava.
Os novos cabelos de Lizaura, de um azul piscina, brilhava com o reflexo da lâmpada de cem velas, suspensa em um fio acima dela.
- Não exagera, Cininha. Pode até ser que no tempo do desemprego do seu pai ele estivesse nos evitando sim. Mas mesmo assim ele se lembrava da gente nas datas especiais...
Eunásio perguntou:
- E quando começa, Valdo? - Aquele emprego era um suspiro de esperança para ele. Valdo trabalhando significava que ele teria alguma coisa útil para ocupar a cabeça, e quem sabe se afastasse também daqueles garotos da rua? Corria um boato entre alguns moradores da rua que esses garotos andavam praticando pequenos delitos. Era boato, mas sempre existia um fundo de verdade nesses falatórios. Por mais que Valdo fosse rebelde, não queria acreditar que ele também participava daqueles delitos.
Valdo coçou a cabeça e respondeu:
- Bem, ainda não respondi. O lance é a distância.
- Distância é o de menos. Aqui na Alameda passa um ônibus que vai até Madureira, e passa em Bonsucesso.
- Ônibus? Tá zoando com minha cara! - Valdo fez uma careta de repulsa. - O senhor acha que tenho estrutura de pegar aquele ônibus que vem de Alcântara lotado de pobres? Ele sempre vem lotado. É ruim viajar em pé, espremido...
Eu ando e não acho ruim, pensou Eunásio.
- Andar de ônibus cheio não tira pedaço de ninguém. Além do mais, da Alameda até a ponte são duas paradas, e depois que chega no Rio, pega a Brasil e já entra em Bonsucesso...
Valdo reclamou.
- Não nasci para isso, pai.
- Ambrósio comprou um carro para Pedrinho - interveio Lizaura na conversa dos dois.
Eunásio a fitou. Finalmente o jantar entrava nos eixos.
- Foi? Pedrinho já tem dezoito anos?
- Você sabe muito bem que ainda não. Mesmo assim o pai pensou no conforto do filho e comprou um Ranger. - Lizaura respondeu com desprezo.
Eunásio preferiu não comentar nada. O que dissesse não ia adiantar muito. Agora estava explicado aquele inusitado jantar. Lizaura queria alguma coisa, e alguma coisa dizia que era bomba.
Lizaura pousou o garfo no seu prato quase vazio, passou o guardanapo por cima do espesso buço descolorido e disse:
- Espero que não tenha esquecido do aniversário de Valdo.
- Não esqueci - Eunásio disse quando engoliu um pedaço de carne. - É dentro de três meses. Deu uma olhada rápida no filho.
Valdo era um rapaz espigado, cabeludo e com uma barbicha rala no pequeno queixo. Tinha sobrancelhas grossas que puxou aos da mãe e olhos castanhos pequenos e juntos. Estava usando uma camiseta preta que tinha uma estampa de uma horrorosa caveira sorrindo. Para Eunásio, seu filho sempre usava a mesma camisa. Podia notar que estava puída nas mangas.
- É, pai - disse Valdo sorrindo um sorriso metálico. Graças ao seu tio Ambrósio fez tratamento dentário e agora exibia um aparelho para corrigir a arcada superior. - Queria que o senhor me desse um presente antecipado. Estive dando uma olhada na concessionária e um amigo meu que trabalha lá me garantiu um preço camarada na moto. Pode ser financiada em tantos meses pagando uma merreca.
Dessa vez Eunásio levantou o rosto do prato. Franziu o cenho e perguntou:
- Uma moto?
- Isso. Só assim posso trabalhar em Bonsucesso na boa.
Antes que Valdo respondesse, Lizaura se intrometeu.
- É o mínimo que pode dar ao nosso filho, Eunásio. Ele merece muito mais.
- Isso, pai - disse Valdo ao mesmo tempo. - Olha que nem é a mais cara! Dá pro senhor pagar na boa.
Eunásio olhou sua mulher e depois virou o rosto para a direita e mirou seu filho. Cininha levantou-se sem pedir licença, pegou seu celular e conferiu quem tinha ligado para ela. Ela pareceu zangada com o que viu. Era uma menina bonitinha, muito branca e com olhos cinzentos e arregalados. Seus cabelos chegavam nos ombros e eram louros. Do jeito que balançava a cabeça significava insatisfação.
- Valdo, não captei o que falou... Você quer que eu faça um financeamento para comprar uma moto para você?
Valdo continuava com aquele sorriso metálico.
- Isso aí, pai.
- Garanti a ele que você vai dar esse presente antecipado - Lizaura disse, enfática. 
Sentindo uma sensação de impotência o corroendo por dentro, Eunásio não podia acreditar naquela conversa. Era completamente surrealista.
Afastou o prato com as duas mãos, pegou uma garrafa d'agua e encheu o seu copo. Deu dois goles e pousou delicadamente o copo na mesa. Sentiu a raiva o minando por dentro e não queria perder a cabeça. Lizaura falava, Valdo também falava, Cininha resmungava, mas Eunásio não ouvia nenhuma palavra; o som que chegava aos seus ouvidos eram confuso, como um estranho dialeto alienígena.
- Valdo é um filho maravilhoso...
- Pai, a moto é vermelha sangue...
- Em quê Pedrinho é melhor que Valdo?
- Gente, quero sair, minhas amigas...
- Meu amigo facilita...
- Honre as calças que veste, porra!
- Basta - disse Eunásio, dando um tapa mesa. Todos ficaram em silêncio, mas não mostravam medo e tampouco respeito. Lizaura tinha os úmidos lábios cerrados e gotinhas de suor brilhavam no buço descolorido; Valdo permanecia com aquele sorriso metálico zombeteiro e batucava a mesa com os dedos da mão direita; Cininha, sentada no sofá com as pernas cruzadas para cima e com o celular grudado na orelha largou um imenso bocejo para mostrar quanto estava entendiada com aquela conversa toda. Sob a lâmpada de sessenta velas, o ambiente estava amarelado, e todos pareciam sofrer de hepatite.
Lizaura o encarou com olhos frios.
- Olhem aí - Lizaura aplaudiu. A voz dela era cortante, como uma navalha rasgando a pele. - Depois de tantos anos esse grande homem resolveu ter voz ativa aqui em casa, cantar de galo. Como mudou depois que conseguiu o emprego que o meu irmão arrumou para ele!
Uma leve dor de cabeça misturada com uma intensa nausea tomou conta de Eunásio. Ele encheu mais um copo de água e esvaziou em dois goles.
- Desculpe, fiquei nervoso...
Lizaura tinha apoio dos filhos, tanto que Cininha interveio:
- Não admito que o senhor berre com a minha mãe.
- Eu não berrei...
- Grande merda de homem que dorme comigo - zombou Lizaura. Ela pegou um pedaço de pão e limpou o restante de molho no seu prato. Enquanto mastigava, disse, ferina: - Durante três anos a tua família te apoiou incondicionalmente enquanto ficou desempregado. Agora que arrumou um emprego, graças à generosidade do meu irmão, quer dar uma de pão-duro e economizar alguns reais. Nem quando trabalhou naquela empresa você foi tão ganinha assim. Lembro muito bem que seu salário vinha pra minha mão, e você nunca reclamou por causa disso.
Sim, Lizaura, está coberta de razão. Tirando a parte que eu depositava na nossa poupança conjunta, entregava o resto do dinheiro pra você. E deu no que deu...
- ... agora se faz de rogado quando é dar um presente para seu filho. - Lizaura continuava desfiando o rosário de lamentações. - Eunásio, cada vez mais você decepciona a sua família.
- Não é isso, Lizaura. Ainda estou em experiência. Sabe que esse trabalho não é garantido.
- Crianças - Exclamou Lizaura, - vejam como seu pai é pessimista!
Eunásio massageou as têmporas com as pontas dos dedos. Aquilo tudo estava errado.
- Não é pessimismo, Lizaura. É ser realista. Nossa situação não é igual há três anos. Naquele tempo recebia ótimo salário e viviamos muito bem. Mas tudo isso mudou.
Valdo ficou e reclamou:
- Não vou ficar aqui escutando isso, pai. Já tô de saco cheio das suas lamentações. Mãe, eu falei com a senhora. O trabalhão todo que a senhora teve para preparar esse jantar só foi perda de tempo. Meu pai prefere me ver desempregado do que comprar uma moto pro meu emprego. Depois não reclamem se eu continuar chegando tarde em casa..
- Calma, filho - Lizaura disse, angustiada. - Eu prometi...
- Uma promessa que nunca pode ser paga - Valdo reclamou. - Vou sair.
- Eu também vou - Cininha aproveitou a deixa.
- Se demorarem muito liguem me avisando - pediu Lizaura. E olhando diretamente para o filho, prometeu: - Juro que terá sua moto. Não sei de que jeito, mas vai ter. Palavra da mãe.
Valdo inclinou e beijou Lizaura na testa.
- Quem sabe, mãe.
Depois que os dois saíram de casa, Lizaura pegou os pratos da mesa, pôs tudo na pia e voltou na sua cadeira. Eunásio tinha uma aparência cansada, abatida, mas a mulher não se comoveu.
- Bem, agora é a nossa vez. Acabou seu espetáculo de merda. Não adianta nada ficar dando uma bambambam da casa. Tua moral aqui dentro de casa é zero idiota. Já te falei, pra cima de mim você nunca vai cantar de galo.
Eunásio não retrucou. Apenas olhava para o novo corte no cabelo de Lizaura. Dessa vez ela pintara o cabelo de azul piscina.
- Foi no salão hoje de novo... - Eunásio não conseguiu controlar a pergunta;
- Fui. Por quê? Agora sou proibida de querer ficar bonita... Bonita pra mim mesma?
- Com que dinheiro? Não recebi o pagamento ainda...
Lizaura balançou a mão mostrando indiferença à pergunta.
- Sempre dou meu jeito.
Eunásio teve um pressentimento nada bom.
- Lizaura. Sei que não temos nenhum centavo na poupança e também sei que não escondemos dinheiro debaixo do colchão.
- Se dependesse só de você, nunca teríamos um centavo em casa.
- Você juntou esse dinheiro?
- E sou mulher pra juntar alguma coisa? Olha, vou falar logo pra você. Pode ficar despreocupado, ainda não gastei por conta da miséria que chama de salário. Não. Isso foi presente de Ingrid.
Ingrid, a nova namorada oficial de Ambrósio.
- E por quê ela te deu esse presente?
Lizaura sorriu. Era um sorriso cruel.
- Ingrid está organizando a pedido do Ambrósio, claro, uma recepção na casa de Teresópolis. Segundo ela, meu irmão chamou alguns empreiteiros para estreitar mais os laços de amizade...
Que nesse caso são negócios... Tipo de negócio não tenho ideia e nem quero saber...
- Então - Lizaura continuou dizendo. Enquanto falava, passava a mão nos cabelos azuis-piscina orgulhosa. - Minha nova cunhada Ingrid pediu minha ajuda nessa recepção. Como vai ter um serviço de buffet, e ela sabe muito bem que sou ótima para organizar tudo, nos chamou pro fim de semana em Teresópolis.
- Esse fim de semana? - Cada vez menos Eunásio gostava do que ouvia.
- Não, pedro-bó, no ano que vem - Lizaura rosnou. - Claro que é. Ela vai passar aqui em casa para nos levar... - Ela se lembrou de algo e consertou: - A carona é para mim, Cininha e Valdo. Você tem que ir de ônibus.
Eunásio suplicou:
- É melhor ficar aqui em casa mesmo...
Lizaura deu um tapinha no braço do marido e falou:
- Enxergue o futuro, paspalho. Pára um minuto com esse pensamento pobre. Já te disse. Se fosse mais esperto, estaríamos ricos e não nessa merda hoje. Meu irmão vai receber gente de grana, de muita grana. Até seu patrão vai, Ingrid me disse. É sua chance de mostrar seu talento a essa gente. Eunásio, não acredito que está satisfeito com a nossa condição. Não acredito mesmo. Volte a ser o Eunásio que conheci, o Eunásio ambicioso... burro, mas ambicioso. Não erre mais como errou naquela vez. Acerte uma vez na vida, merda.
Ele escutou. Mas sua vontade era mudar. Mudar para melhor, acertar suas dívidas (que Lizaura fez, mas em seu nome), trabalhar em paz, não ficar com medo de um telefonema, de uma ameaça... Queria deixar o passado para bem longe... Se possível, esquecer de um certo dia que dormiu empregado e acordou desempregado.
Mas agora tinha essa recepção. E com certeza o final de semana seria bem longo...

Continua...

No próximo capítulo
FIM DE SEMANA EM TERESÓPOLIS PARTE 1

Rogerio de C. Ribeiro




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