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sábado, 13 de dezembro de 2014

O CARTÃO CAPÍTULO 3

OS NOVOS COLEGAS DE TRABALHO

- Conforme solicitação, a segunda via do cartão - Pela terceira vez Eunásio leu aquela mensagem escrito à mão em um quadrado de folha pautada em caneta azul. A caligrafia era terrível, trêmula e indecisa como de uma criança de cinco anos aprendendo as primeiras letras do beabá.
Que diabos era aquilo?
E que história era essa de segunda via?
Um trote. Ou o verdadeiro dono do cartão pediu. Seu xará.
Estudou atentamente o nome escrito e a numeração do cartão.
- Isso é brincadeira... - Eunásio murmurou. A falange ossuda do indicador deslizaram por cima da numeração do cartão:1234, 5678, 9101,1121...
Virou o cartão e  viu que os últimos três números eram 314.
Ordem crescente numérico.
Sem marca d'água, sem nome de banco, nem operadora... Sem nenhuma identificação a não ser essa numeração em série e o meu nome com parte do meu sobrenome.
Dessa vez não jogou o cartão na gaveta e nem partiu pelo meio. Simplesmente manteve-o entre os dedos; enquanto sentia o plástico grudando nas digitais observou os colegas do escritório. Alguma coisa nele avisava que aquilo tudo era obra do Maurílio. Viu que ele parecia absorto com algumas pastas de arquivo enquanto separava várias faturas. Não se deu ao trabalho de desviar os olhos no que fazia para pelo menos uma vez virar a cabeça para a mesa dele. Bem, pensou Eunásio, se não é coisa de Maurílio, talvez seja Eurico. A mesa de Eurico ficava atrás a de Maurílio, e Eunásio o viu em pé dando as costas para ele e com o celular grudado na orelha enquanto coçava a perna direita. Dava para ouvir o que dizia:
- Queridinha, quantas vezes vou ter que repetir pra que você enfie na sua linda cabecinha oca? Nosso caso acabou, tô em outra...
 Eunásio conferiu o restante das pessoas na sala naquele momento:
Responsável pelos materiais de trabalho, Andrezinho passava a maior parte do seu horário enfurnado em um imenso barracão na Ilha do Vianna atendendo as necessidades dos encarregados e mestres de obras.Também era responsável pelas quentinhas dos operários que chegavam de barcaças que atravessavam os quinze quilômetros da Baía da Guanabara, separando a ilha do estaleiro. Às vezes era o intermediário que fazia a ponte dos pedidos de vales que os operários pediam adiantado a Vandilson. Era um sujeito baixo, atarracado, com a pele curtida de sol, falante, bom de papo, sem mal tempo. Nutria grande simpatia pelos donos das empreiteiras pelo seu bom humor e puxa-saquismo. Nunca levou nenhuma bronca do patrão e nem foi repreendido em público, como acontecia com os outros. Mas havia um motivo para tudo isso. O cunhado de Andrezinho trabalhava em uma editora de revistas pornográficas, e graças a isso, invariavelmente costumava presentear Vandilson com algumas edições. Eunásio ouvira essas histórias pelas conversas dos outros, e pelo pouco tempo que trabalhava ali, constatou que era verdade. Agora notou que ele tinha enchido um copo plástico do bebedouro para levar junto uma xícara de café ao patrão como sempre fazia naquela hora. Enquanto desfilava pela sala em direção da sala privativa de Vandilson equilibrando a bandeja na mão, Eunásio viu que no bolso detrás da calça jeans que usava tinha uma pequena revista dobrada. Mais um agrado a Vandilson, concluiu.
Com cada um sentado em suas mesas, Birinha e Xuvisquem discutiam sobre a derrota do Flamengo. O debate era tão sério que as veias do pescoço de Birinha pareciam prestes a explodir.  Com um rosto redondo e sempre vermelho, dava a impressão que sofria de pressão alta. E do jeito que falava gesticulando furiosamente as mãos, corria o sério risco de enfartar ou ter um derrame. Já Xuvisquem - seu nome era Altamirando, o apelido continuava sendo um mistério para Eunásio, - mantinha a serenidade de um lorde inglês. Enquanto Birinha berrava e soltava perdigotos a cada palavra, Xuvisquem falava com sua voz mansa e tranquila. Dois polos opostos, mas que sempre estavam juntos, no escritório e fora deles. Por último,  Kellerson, que por duas vezes foi o portador dos misteriosos envelopes, estava sentado na sua pequena mesa fazendo palavras cruzadas do jornal. Ao pesar daquela aparência desleixada e com a cara tomada de espinhas, gostava de ler e sabia conversar sobre qualquer assunto. Seu filho tinha a mesma idade do contínuo, mas seu interesse por cultura era zero.
Ninguém prestava nenhuma atenção para ele e o cartão, ninguém comentava nada e nem soltavam piada. Era como se ele não existisse naquela sala, que nunca tivesse pisado ali.
Vai fazer um mês que entrei na empresa e até hoje não tive simpatia dos meus colegas. É como se fosse um enfeite nessa mesa.
E como teria um simples gesto de amizade com os quatro colegas de trabalho se a principal função na empresa que foi designado era detectar os erros que eles cometiam nas folhas de pagamento e depois passar relatórios desses mesmos erros ao patrão?
Eunásio foi avisado que isso aconteceria desde o momento que foi convocado para a entrevista de emprego. Vandilson deixou bem claro o que queria:
"Achei muito interessante seu currículo, principalmente no ponto em que fala da sua experiência profissional. Durante vinte anos mexeu com números. O mago da contabilidade, não é isso que falam de você hoje? O braço direito de Giroldi Gesteira... Não, não fale ainda. Não o chamei para falar do seu antigo emprego. Pra ser sincero, o que houve lá não me interessa em nada. Vou botar as cartas na mesa, Eunásio. Ambrósio é um grande amigo meu. Sempre que precisei de uma ajuda ele estava lá pra me ajudar. Comentei com ele que preciso urgentemente de um conferente, mas não um conferentezinho qualquer. Quero alguém que seja a extensão dos meus olhos naquela sala, alguém que não tenha o menor pudor em detectar algum erro e que dê o  nome dos bois - o que nesse caso seria o nome das antas. Seu cunhado me indicou seu nome, me garantiu que você se encaixa perfeitamente para o que quero. Quando vi no seu currículo o antigo emprego, fiquei um pouco na corda bamba. Mas foi passageiro. Seu perfil é exatamente para minhas necessidades. Quanto ao salário, bem, não chega nem a um terço do que você recebia. Mas alguma coisa me diz que isso não fará diferença para você, né? Além do mais, há quanto tempo que não sabe o que é um ordenado? Dois anos, três? Eunásio, enquanto as portas estão fechadas para você, a minha está escancarada. É pegar ou largar. Venha ser minha sombra, confira tudo que os incompetentes me aprontam e me alertem dos erros. Prometo para você que não vou assinar sua carteira de trabalho com a função de "alcaguete oficial", assino como conferente. Então, o que me diz?"
Bem, surgiu a oportunidade e alguma pessoa devia fazer esse serviço, se não fosse ele seria outro. E além disso, depois de três anos desempregado, com as empresas fechando portas e janelas para ele,  raspando no fundo do tacho o restinho da poupança que juntou em vinte anos para sua velhice, detectar e denunciar os erros dos colegas da empreiteira ao patrão seria tão normal como tomar um banho para dormir , contanto que no final do mês recebesse seu salário. Graças ao seu cunhado.
Ambrósio Neves era o único irmão de Lizaura.  Seu cunhado era um homem enérgico, dado a rompantes teatrais, com a voz grave e furiosa. No seu jeito de falar de forma rápida, atropelava e engolia algumas palavras. Pessoas ligadas a ele riam desse cacoete, mas nunca na frente dele. Corria uma lenda que dizia que Ambrósio quebrou um braço, três costelas e dois dentes de um funcionário seu, só porque comentou que a nova mulher do patrão era gostosa. Ambrósio, dono de uma empreiteira que prestava serviços no estaleiro MacLaren, contava com quinhentos operários em seu quadro de funcionários. Enquanto era truculento e duro com seus subordinados, em casa era o oposto. Com seu único filho, o Pedrinho, era extremamente amoroso e dedicado. Atualmente morava com Ingrid, sua terceira namorada oficial (Não as chamava de esposas. Sua única mulher foi a mãe de Pedrinho, que faleceu vítima de parada cardíaca quando o menino tinha dois anos) em uma cobertura em frente à praia das Flechas. Das grandes janelas panorâmicas podia-se ver o Museu de Arte Contemporânea, em forma de disco voador, na praia da Boa Viagem. Como Lizaura era única irmã e sem mais parentes mais próximos, mantinha contato com ela, mesmo que isso acontecesse ocasionalmente. Mas sempre que dava uma brecha, sua irmã aparecia para uma visita, mesmo que essa visita significasse pedir alguma coisa. Já seu sobrinho Valdo era presença constante no apartamento, devido a Pedrinho, que tinha o primo como melhor amigo. Numa dessas visitas que fez sem ser convidada, Lizaura pediu, em nome dela e dos filhos, que Ambrósio arrumasse qualquer coisa pro boçal do Eunásio fazer,  nem que fosse para limpar as latrinas dos banheiros dos peões. Depois de tanta insistência, Ambrósio se lembrou de uma conversa que tivera com Vandilson  e como ele devia uns favores para ele, disse para sua irmã que ia conversar com o amigo e aproveitou para também pedir que ela sumisse por um bom tempo da sua casa. Com essa promessa, Lizaura - nesse tempo com uma cabeleira pintada de lilás - anuiu. Mas assim que Eunásio foi admitido, a primeira coisa que ela fez foi fazer uma visitinha ao irmão e sua estimada cunhadinha.
Eunásio nunca foi íntimo do cunhado, mesmo que frequentasse a cobertura indo de contra a vontade rebocado por Lizaura, e no dia que Ambrósio anunciou do emprego que arrumara, foi chamado pelo cunhado para a ampla varanda e de frente ao mar, e ouviu em silêncio as recomendações de Ambrósio, que foi bem claro, mesmo nas palavras atropeladas:  
"Num cagra no prau, Eufásio. Butei a muão num fogu pu vuce. Saba que num tou fazendu trudo isso pur tua calça. To mi lichando si tá trapalhando ou não. Façu isso pur minha irmã... pra num ulvir mais a voz di taquara rachad dimplorando serviçu pro imprenstável du marido!"
A última coisa que Eunásio queria era que o cunhado lhe arrumasse um emprego. Em vinte anos casado com Lizaura, nunca precisou de nenhuma ajuda dele, pois sabia que tudo que Ambrósio fazia pelos outros, mesmo dizendo que era por amizade, depois cobrava aquela ajuda. Como chegara em um beco sem saída, estava perdido e com a família o cobrando diariamente,  engoliu o orgulho ferido e preferiu fingir que nunca houvera aquele diálogo. Mas em algumas noites insones a voz trovejante de um dialeto torto do cunhado o assombrava.
Pelo menos agora estava trabalhando mesmo com um salário menor do que da empresa anterior. Claro que o padrão de vida da família caíra drasticamente, as reclamações de Lizaura eram diárias, as queixas dos filhos retumbavam em cada canto da casa, mas ele tinha uma função, renascia aos poucos para a sociedade, mesmo que esse emprego fosse mostrar as falhas dos seus colegas e adquirir a antipatia geral.
Essas lembranças lhe chegaram tão de repente que por um instante se esqueceu onde estava. Calado, ainda sentado empertigado na cadeira, com os zumbidos das vozes sussurrantes ao seu redor, fixamente olhava aquele cartão preto de plástico entre seus dedos raquíticos. No dia anterior quebrara um cartão pelo meio e jogara na lixeira e em menos de vinte e quatro horas chegou uma segunda via.
Girou a cadeira de rodinhas ao seu lado direito e curvou-se para a pequena lixeira que ficava encostava nas pernas da mesa. A lixeira era forrada com um saco de plástico azul e tinha papéis amassados e rasgados pela metade. Enfiou a mão livre no meio do lixo e vasculhou com os dedos entre rascunhos e embalagens vazias.
Não se lembrava se Kellerson jogara fora o lixo no dia anterior. Mas também não se lembrava de ter enchido tanto a lixeira hoje.
Mas não achou nenhum cartão partido. Nem a metade dele.
O  antigo conferente que trabalhou aqui antes de mim teve derrame e agora vive encostado pelo INSS. Só me falta agora ter um piripaque e acabar entrevado em casa. Aí mesmo seria o meu fim ter que passar meus dias inteiros com Lizaura me enchendo os ouvidos com suas queixas e lamentações. Preciso manter a calma e me controlar. Não posso explodir.
Pensou em perguntar a Kellerson se ele tinha esvaziado sua lixeira, mas mudou de ideia. Largou a lixeira de lado e voltou à sua posição, com as costas retas na cadeira. Olhou mais uma vez para o cartão de crédito e dessa vez guardou-o no bolso da camisa social que usava. Pegou a caneta vermelha e voltou para os relatórios.
Mais tarde ia pensar nesse cartão. Agora era a hora de encontrar os erros cometidos pelos seus colegas de trabalho e entregar tudo de bandeja, como se fosse garçom, a Vandilson.  

Continua...
No próximo capítulo:
APROVEITANDO O HORÁRIO DE ALMOÇO


Rogerio de C. Ribeiro

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