OS NOVOS COLEGAS DE TRABALHO
-
Conforme solicitação, a segunda via do cartão - Pela terceira vez Eunásio leu
aquela mensagem escrito à mão em um quadrado de folha pautada em caneta azul. A
caligrafia era terrível, trêmula e indecisa como de uma criança de cinco anos
aprendendo as primeiras letras do beabá.
Que
diabos era aquilo?
E
que história era essa de segunda via?
Um trote. Ou o verdadeiro dono do
cartão pediu. Seu xará.
Estudou
atentamente o nome escrito e a numeração do cartão.
-
Isso é brincadeira... - Eunásio murmurou. A falange ossuda do indicador
deslizaram por cima da numeração do cartão:1234, 5678, 9101,1121...
Virou
o cartão e viu que os últimos três
números eram 314.
Ordem
crescente numérico.
Sem marca d'água, sem nome de
banco, nem operadora... Sem nenhuma identificação a não ser essa numeração em
série e o meu nome com parte do meu sobrenome.
Dessa
vez não jogou o cartão na gaveta e nem partiu pelo meio. Simplesmente manteve-o
entre os dedos; enquanto sentia o plástico grudando nas digitais observou os
colegas do escritório. Alguma coisa nele avisava que aquilo tudo era obra do
Maurílio. Viu que ele parecia absorto com algumas pastas de arquivo enquanto
separava várias faturas. Não se deu ao trabalho de desviar os olhos no que
fazia para pelo menos uma vez virar a cabeça para a mesa dele. Bem, pensou Eunásio, se não é coisa de Maurílio, talvez seja
Eurico. A mesa de Eurico ficava atrás a de Maurílio, e Eunásio o viu em pé dando
as costas para ele e com o celular grudado na orelha enquanto coçava a perna
direita. Dava para ouvir o que dizia:
-
Queridinha, quantas vezes vou ter que repetir pra que você enfie na sua linda
cabecinha oca? Nosso caso acabou, tô em outra...
Eunásio conferiu o restante das pessoas na
sala naquele momento:
Responsável
pelos materiais de trabalho, Andrezinho passava a maior parte do seu horário
enfurnado em um imenso barracão na Ilha do Vianna atendendo as necessidades dos
encarregados e mestres de obras.Também era responsável pelas quentinhas dos
operários que chegavam de barcaças que atravessavam os quinze quilômetros da
Baía da Guanabara, separando a ilha do estaleiro. Às vezes era o intermediário
que fazia a ponte dos pedidos de vales que os operários pediam adiantado a
Vandilson. Era um sujeito baixo, atarracado, com a pele curtida de sol,
falante, bom de papo, sem mal tempo. Nutria grande simpatia pelos donos das
empreiteiras pelo seu bom humor e puxa-saquismo. Nunca levou nenhuma bronca do
patrão e nem foi repreendido em público, como acontecia com os outros. Mas havia
um motivo para tudo isso. O cunhado de Andrezinho trabalhava em uma editora de
revistas pornográficas, e graças a isso, invariavelmente costumava presentear Vandilson
com algumas edições. Eunásio ouvira essas histórias pelas conversas dos outros,
e pelo pouco tempo que trabalhava ali, constatou que era verdade. Agora notou
que ele tinha enchido um copo plástico do bebedouro para levar junto uma xícara
de café ao patrão como sempre fazia naquela hora. Enquanto desfilava pela sala
em direção da sala privativa de Vandilson equilibrando a bandeja na mão,
Eunásio viu que no bolso detrás da calça jeans que usava tinha uma pequena
revista dobrada. Mais um agrado a
Vandilson, concluiu.
Com
cada um sentado em suas mesas, Birinha e Xuvisquem discutiam sobre a derrota do
Flamengo. O debate era tão sério que as veias do pescoço de Birinha pareciam
prestes a explodir. Com um rosto redondo
e sempre vermelho, dava a impressão que sofria de pressão alta. E do jeito que
falava gesticulando furiosamente as mãos, corria o sério risco de enfartar ou
ter um derrame. Já Xuvisquem - seu nome era Altamirando, o apelido continuava
sendo um mistério para Eunásio, - mantinha a serenidade de um lorde inglês.
Enquanto Birinha berrava e soltava perdigotos a cada palavra, Xuvisquem falava
com sua voz mansa e tranquila. Dois polos opostos, mas que sempre estavam
juntos, no escritório e fora deles. Por último,
Kellerson, que por duas vezes foi o portador dos misteriosos envelopes,
estava sentado na sua pequena mesa fazendo palavras cruzadas do jornal. Ao
pesar daquela aparência desleixada e com a cara tomada de espinhas, gostava de
ler e sabia conversar sobre qualquer assunto. Seu filho tinha a mesma idade do
contínuo, mas seu interesse por cultura era zero.
Ninguém
prestava nenhuma atenção para ele e o cartão, ninguém comentava nada e nem
soltavam piada. Era como se ele não existisse naquela sala, que nunca tivesse
pisado ali.
Vai fazer um mês que entrei na
empresa e até hoje não tive simpatia dos meus colegas. É como se fosse um
enfeite nessa mesa.
E
como teria um simples gesto de amizade com os quatro colegas de trabalho se a
principal função na empresa que foi designado era detectar os erros que eles
cometiam nas folhas de pagamento e depois passar relatórios desses mesmos erros
ao patrão?
Eunásio
foi avisado que isso aconteceria desde o momento que foi convocado para a entrevista
de emprego. Vandilson deixou bem claro o que queria:
"Achei
muito interessante seu currículo, principalmente no ponto em que fala da sua
experiência profissional. Durante vinte anos mexeu com números. O mago da
contabilidade, não é isso que falam de você hoje? O braço direito de Giroldi
Gesteira... Não, não fale ainda. Não o chamei para falar do seu antigo emprego.
Pra ser sincero, o que houve lá não me interessa em nada. Vou botar as cartas
na mesa, Eunásio. Ambrósio é um grande amigo meu. Sempre que precisei de uma
ajuda ele estava lá pra me ajudar. Comentei com ele que preciso urgentemente de
um conferente, mas não um conferentezinho qualquer. Quero alguém que seja a
extensão dos meus olhos naquela sala, alguém que não tenha o menor pudor em
detectar algum erro e que dê o nome dos
bois - o que nesse caso seria o nome das antas. Seu cunhado me indicou seu
nome, me garantiu que você se encaixa perfeitamente para o que quero. Quando vi
no seu currículo o antigo emprego, fiquei um pouco na corda bamba. Mas foi
passageiro. Seu perfil é exatamente para minhas necessidades. Quanto ao
salário, bem, não chega nem a um terço do que você recebia. Mas alguma coisa me
diz que isso não fará diferença para você, né? Além do mais, há quanto tempo
que não sabe o que é um ordenado? Dois anos, três? Eunásio, enquanto as portas
estão fechadas para você, a minha está escancarada. É pegar ou largar. Venha
ser minha sombra, confira tudo que os incompetentes me aprontam e me alertem
dos erros. Prometo para você que não vou assinar sua carteira de trabalho com a
função de "alcaguete oficial", assino como conferente. Então, o que
me diz?"
Bem,
surgiu a oportunidade e alguma pessoa devia fazer esse serviço, se não fosse
ele seria outro. E além disso, depois de três anos desempregado, com as
empresas fechando portas e janelas para ele, raspando no fundo do tacho o restinho da poupança
que juntou em vinte anos para sua velhice, detectar e denunciar os erros dos
colegas da empreiteira ao patrão seria tão normal como tomar um banho para
dormir , contanto que no final do mês recebesse seu salário. Graças ao seu
cunhado.
Ambrósio
Neves era o único irmão de Lizaura. Seu
cunhado era um homem enérgico, dado a rompantes teatrais, com a voz grave e
furiosa. No seu jeito de falar de forma rápida, atropelava e engolia algumas
palavras. Pessoas ligadas a ele riam desse cacoete, mas nunca na frente dele.
Corria uma lenda que dizia que Ambrósio quebrou um braço, três costelas e dois
dentes de um funcionário seu, só porque comentou que a nova mulher do patrão
era gostosa. Ambrósio, dono de uma empreiteira que prestava serviços no
estaleiro MacLaren, contava com quinhentos operários em seu quadro de
funcionários. Enquanto era truculento e duro com seus subordinados, em casa era
o oposto. Com seu único filho, o Pedrinho, era extremamente amoroso e dedicado.
Atualmente morava com Ingrid, sua terceira namorada oficial (Não as chamava de
esposas. Sua única mulher foi a mãe de Pedrinho, que faleceu vítima de parada
cardíaca quando o menino tinha dois anos) em uma cobertura em frente à praia das
Flechas. Das grandes janelas panorâmicas podia-se ver o Museu de Arte
Contemporânea, em forma de disco voador, na praia da Boa Viagem. Como Lizaura
era única irmã e sem mais parentes mais próximos, mantinha contato com ela,
mesmo que isso acontecesse ocasionalmente. Mas sempre que dava uma brecha, sua
irmã aparecia para uma visita, mesmo que essa visita significasse pedir alguma
coisa. Já seu sobrinho Valdo era presença constante no apartamento, devido a
Pedrinho, que tinha o primo como melhor amigo. Numa dessas visitas que fez sem
ser convidada, Lizaura pediu, em nome dela e dos filhos, que Ambrósio arrumasse
qualquer coisa pro boçal do Eunásio fazer, nem que fosse para limpar as latrinas dos
banheiros dos peões. Depois de tanta insistência, Ambrósio se lembrou de uma
conversa que tivera com Vandilson e como
ele devia uns favores para ele, disse para sua irmã que ia conversar com o
amigo e aproveitou para também pedir que ela sumisse por um bom tempo da sua
casa. Com essa promessa, Lizaura - nesse tempo com uma cabeleira pintada de
lilás - anuiu. Mas assim que Eunásio foi admitido, a primeira coisa que ela fez
foi fazer uma visitinha ao irmão e sua estimada cunhadinha.
Eunásio
nunca foi íntimo do cunhado, mesmo que frequentasse a cobertura indo de contra
a vontade rebocado por Lizaura, e no dia que Ambrósio anunciou do emprego que
arrumara, foi chamado pelo cunhado para a ampla varanda e de frente ao mar, e
ouviu em silêncio as recomendações de Ambrósio, que foi bem claro, mesmo nas
palavras atropeladas:
"Num
cagra no prau, Eufásio. Butei a muão num fogu pu vuce. Saba que num tou fazendu
trudo isso pur tua calça. To mi lichando si tá trapalhando ou não. Façu isso pur minha irmã... pra num ulvir mais a voz di taquara rachad dimplorando serviçu
pro imprenstável du marido!"
A
última coisa que Eunásio queria era que o cunhado lhe arrumasse um emprego. Em
vinte anos casado com Lizaura, nunca precisou de nenhuma ajuda dele, pois sabia
que tudo que Ambrósio fazia pelos outros, mesmo dizendo que era por amizade,
depois cobrava aquela ajuda. Como chegara em um beco sem saída, estava perdido
e com a família o cobrando diariamente, engoliu
o orgulho ferido e preferiu fingir que nunca houvera aquele diálogo. Mas em
algumas noites insones a voz trovejante de um dialeto torto do cunhado o
assombrava.
Pelo
menos agora estava trabalhando mesmo com um salário menor do que da empresa
anterior. Claro que o padrão de vida da família caíra drasticamente, as
reclamações de Lizaura eram diárias, as queixas dos filhos retumbavam em cada
canto da casa, mas ele tinha uma função, renascia aos poucos para a sociedade, mesmo
que esse emprego fosse mostrar as falhas dos seus colegas e adquirir a
antipatia geral.
Essas
lembranças lhe chegaram tão de repente que por um instante se esqueceu onde
estava. Calado, ainda sentado empertigado na cadeira, com os zumbidos das vozes
sussurrantes ao seu redor, fixamente olhava aquele cartão preto de plástico entre
seus dedos raquíticos. No dia anterior quebrara um cartão pelo meio e jogara na
lixeira e em menos de vinte e quatro horas chegou uma segunda via.
Girou
a cadeira de rodinhas ao seu lado direito e curvou-se para a pequena lixeira
que ficava encostava nas pernas da mesa. A lixeira era forrada com um saco de
plástico azul e tinha papéis amassados e rasgados pela metade. Enfiou a mão
livre no meio do lixo e vasculhou com os dedos entre rascunhos e embalagens
vazias.
Não
se lembrava se Kellerson jogara fora o lixo no dia anterior. Mas também não se
lembrava de ter enchido tanto a lixeira hoje.
Mas
não achou nenhum cartão partido. Nem a metade dele.
O antigo conferente que trabalhou aqui antes de
mim teve derrame e agora vive encostado pelo INSS. Só me falta agora ter um
piripaque e acabar entrevado em casa. Aí mesmo seria o meu fim ter que passar
meus dias inteiros com Lizaura me enchendo os ouvidos com suas queixas e
lamentações. Preciso manter a calma e me controlar. Não posso explodir.
Pensou
em perguntar a Kellerson se ele tinha esvaziado sua lixeira, mas mudou de
ideia. Largou a lixeira de lado e voltou à sua posição, com as costas retas na
cadeira. Olhou mais uma vez para o cartão de crédito e dessa vez guardou-o no
bolso da camisa social que usava. Pegou a caneta vermelha e voltou para os
relatórios.
Mais
tarde ia pensar nesse cartão. Agora era a hora de encontrar os erros cometidos
pelos seus colegas de trabalho e entregar tudo de bandeja, como se fosse garçom,
a Vandilson.
Continua...
No
próximo capítulo:
APROVEITANDO
O HORÁRIO DE ALMOÇO
Rogerio
de C. Ribeiro
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