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sábado, 9 de maio de 2015

NADA COMO UM DIA DEPOIS DO OUTRO

Nota do Autor: O conto está incompleto. Estou postando as primeiras páginas e conforme os comentários publicarei o restante da história,

I
Também podia ter escrito: "A vingança é um prato que se come frio." São tantas as frases que falam de vingança que se fosse enumera-las não faria mais nada durante alguns dias. E não é isso que quero. Não sinto a mínima vontade e nem tenho inspiração em publicar uma enciclopédia de frases e histórias sobre vingança. Não sou nenhum Conde de Monte Cristo, mas da forma  como me senti quando tive o desprazer de revê-lo, tivesse incorporado um pouco desse personagem de Dumas.
Por quê? - Talvez estejam se perguntando enquanto estão lendo a minha singela confissão -, logo você, Geraldo Nunes, um empresário de sucesso, o grande  benfeitor das causas mais nobres, o último solteirão mais cobiçado do Rio de Janeiro, decidiu escrever sobre esse sentimento repugnante, sórdido, que uma pessoa possa guardar dentro de si, como essa da vingança?
Eu podia omitir esse fato, mas não seria honesto comigo, e nem com vocês. Sinceramente, o máximo que cheguei perto em uma escrita foi na assinatura dos memorandos que distribuía aos funcionários da minha empresa. Nunca tive jeito em escrever e nunca tive nenhuma pretensão de publicar um livro. Minha praia sempre foi a venda. Só que agora sinto necessidade de contar, o que aconteceu comigo no mês de março de 2008. Provavelmente será a primeira e última vez que me arrisco nessa empreitada dolorida.
Aos meus familiares e amigos que estejam lendo: Não reparem dos erros ortográficos e das divagações que faço. Espero que seja bem claro no que quero dizer. Ou melhor, no que vou contar aqui.
Nada como um dia depois do outro. Quando penso nessas palavras, chego à conclusão que fazem todo sentido. Talvez não façam durante uma boa parte na sua vida, mas uma hora você se dá conta e diz: "É isso mesmo, como pode ser isso, mas nada como um dia depois..."
No primeiro parágrafo escrevi sobre a vingança. E é disso que escrevo na minha confissão. Sem querer ser um catedrático, coisa que nunca fui, mas é  uma tese que explica da suprema vingança e suas consequências. Do fato que nunca esqueci das coisas que fizeram comigo, e da surpresa que tive das voltas que o destino deu na minha vida, principalmente no improvável imprevisto que me entregou de bandeja meu maior desafeto, o causador dos meus infortúnios. E do momento que paguei tudo que ele me fez, com  minhas mãos.
E se não escrevesse sobre isso, minha vingança ficaria incompleta. Quero que as pessoas, as que um dia passaram o que passei em um momento na sua vida leiam para que saibam que nada na vida é definitivo, só a morte. Ou quem sabe também nem a morte. Não são os espíritas que vivem apregoando que ninguém morre, apenas fazem uma passagem só de ida a um plano superior...
Como sou leigo, não vou falar disso.
Só vou falar do que houve de concreto, real, que está aqui entre nós.
E o desfecho de como sanei uma ferida profunda que nunca cicatrizava vinda de um distante passado.
II
Para quem não me conhece, tenho um grande escritório de vendas que ocupa dois andares inteiros na Avenida Treze de Maio, ao lado da Cinelândia, no centro do Rio. Ali trabalham para mim mais de 30 vendedores registrados que me proporcionam um ótimo padrão na minha vida. Nesse exato momento que estou escrevendo, tenho 45 anos, nunca me casei, apesar de ter tido algumas namoradas.
Acho engraçado como as pessoas viviam se preocupando com minha eterna solteirice. Principalmente meus irmãos, os parasitas que viviam à minha custa, casados e com filhos, que se mostravam preocupados:
- Quando vai parar para pensar em se casar?
- Estou bem assim - respondia. Esse assunto sempre vinha à baila no churrasco mensal que eu promovia para minha família na minha mansão em Camboinhas.
- Mas a vida de casado é tão bom...
Respondia de bate pronto:
- Se casamento fosse mesmo tão bom quanto pinta, não haveria nenhum divórcio!
- Não adianta convencê-lo, Gilmonte. Quando Geraldo morrer, seu dinheiro vai ser dividido pra nós da família. Isso não tem como escapar - Dizia e repetia sempre o engraçado e alcoólatra do meu irmão do meio, Gabriel, sempre em briga com sua esposa, Ana Méri.
O negócio na minha família sempre foi dinheiro, a mola que move o mundo. Mas eles mal sabiam que eu tinha planos para minha fortuna.  - "Bem, se estão lendo essa confissão, agora sabem. E certamente não estão nem um pouco satisfeitos!" - Sabia que minha família me via como o ovelha negra. Desde criança sou assim, retraído, tímido, focado no meu trabalho. Comecei do zero e hoje tenho um grande empreendimento. Nunca pedi ajuda a ninguém, aprendi na vida que só você pode depender de si mesmo. Ninguém quer ajudar. É muito mais fácil querer te atrapalhar.
E esse meu jeito fechadão sempre incomodou as pessoas. Talvez alguns dissessem entre eles que sou meio maluco. Bem, depois do que houve na semana passada, eles não estão sem razão em desconfiar da minha personalidade secreta.
O meu lado escuro sempre foi secreto, até que revi... depois digo quem tive o prazer de rever. Mantive meu lado animal bem escondido. Minha postura diante da sociedade sempre foi cordial, sorridente, que gostava de receber os amigos e parentes para churrasco no fim de semana na minha casa.
Por falar em churrasco, lá em casa eu que era o churrasqueiro. Ninguém mexia nas carnes, nem nos espetos. Deixava-os na beira da piscina bebendo, mergulhando, enquanto assava as carnes.
Com certeza, eles nunca mais vão esquecer dos meus churrascos.
III
José Fernando Menezes. Um nome bastante comum. Quantos Zés vocês conhecem? E Fernando? Bastante. Tem José que odeia o nome, e quando se apresenta, só diz o segundo nome. Oi, meu nome é Fernando. Pode me chamar de Nando. Ou pelo sobrenome. Olá, sou Menezes. Só Menezes.
José Fernando Menezes. Um nome comum para várias pessoas. Menos para mim. Esse nome faz parte da minha vida. Um tempo que queria esquecer, mas os anos foram ingratos comigo. Por mais que tentasse esquecer, mais as imagens ficavam nítidas diante dos meus olhos.
José Fernando Menezes. Podem existir milhares de caras com esse nome. Mas dificilmente existirá dois Josés Fernandos Menezes que tem 47 anos, que tem dentes cavalares, que moram na rua Lemos Cunha, em Niterói, que tem um pai que se chama José Paulino Menezes e uma mãe que se chama Diva Menezes.
Não. Seria coincidência demais. Para ser sincero, humanamente impossível.
E não é que um dia parou na minha mesa uma ficha de inscrição, com solicitação de emprego, de um certo José Fernando Menezes. Que ironia no destino! Me surpreendo com o caminho e as voltas que a vida dá. Para terem ideia do que estou dizendo, quando minha empresa abre uma vaga de trabalho, normalmente as fichas vão primeiro para o supervisor geral, depois para o gerente de recursos humanos, depois cai na mesa da minha assistente, que após uma sabatina com o candidato, e o aprovando, me comunica que tem mais um funcionário. Sou como uma ilha no escritório, mal tenho contato com os candidatos.
Mas dessa vez, minha assistente estava de licença médica. Uma gripe, TPM, não sei bem. Então, a ficha do candidato caiu na minha mesa, e como tínhamos urgência em preencher o quadro de funcionários, analisei o curriculum vitae.
E para minha surpresa, o que me chamou atenção primeiro foi a foto do candidato. Uma sensação de dèjá-vu passou de relance quando vi o rosto quadrado, o nariz protuberante, as sobrancelhas cerradas e o cabelo ainda preto e crespo. Era quase o mesmo rosto de um certo homem que morou, em 1976, em Icaraí, na rua Lemos Cunha, pai de...
Não era mera semelhança. Do retrato, li o nome escrito abaixo.
E mais uma vez vou escrever esse nome:
José Fernando Menezes.
Nunca me esqueci desse nome. E como poderia?
IV
Quando cheguei no escritório, vi os candidatos sentados na salinha reservada, todos aparentando um certo nervosismo. Fingi que não os tinha visto, passei pela grande vidraça que separava os aposentos, dei bom dia aos funcionários e fui para minha sala.
Minha assistente, Leonora, apareceu nesse dia. Perguntei pela sua saúde, e brinquei - para surpresa dela, já que dificilmente eu sorria, - que se ela não tivesse o atestado médico, ia ser descontada pela falta.
Na minha sala, me aconcheguei na minha cadeira de couro, liguei o laptop, bebi café e verifiquei o ranking do dia anterior. Leonora entrou em seguida, carregando uma pilha de fichas. Ela disse:
- Posso ir entrevistar os candidatos?
O bom de ser circunspecto, é que quando fazemos uma cara entediada, ninguém vai desconfiar que algo mudou no seu temperamento. Como agora, quando olhei Leonora por cima dos óculos e disse:
- Hoje não, Leonora. Eu mesmo vou fazer as entrevistas.
- Senhor! - Leonora arregalou os olhos. - Sr. Geraldo, o senhor nunca entrevistou nenhum candidato!
Batuquei a mesa com os dedos, querendo mostrar uma certa impaciência, e retruquei:
- Sempre existe uma primeira vez.
- O senhor... - Coitadinha, ela estava à beira das lágrimas. Por um instante, fiquei com pena dela. Só por um instante! - Eu não pude vir nesses dias... estava acamada... se pudesse, o senhor sabe, faria tudo...
Não queria mais martirizar a pobre coitada. Se deixasse, ela ficaria implorando e choramingando nos meus pés o dia inteiro. E tempo é dinheiro, esse era meu lema. Pelo menos, até algum tempo atrás.
- Não tem nada a ver com sua falta, Leonora. Quero participar mais na admissão dos novos vendedores. Não desmerecendo seu trabalho, mas os últimos admitidos não corresponderam com a expectativa...
E blá blá blá, discorri sobre a nova visão participativa, que os vendedores vendem mais quando sabem que o chefe está ao lado deles, os apoiando... e de novo mais blablabla´...
Não sei se Leonora ficou convencida com minha retórica, mas não me importava como ela ficou. Afinal, eu pago os salários em dia, e a última palavra sempre será a minha.
Teve um tempo que não era assim... eu não tinha voz, ninguém escutava meus apelos, minhas angústias... Mas hoje é outro tempo.
E pela primeira vez, entrevistei os candidatos. Quando entreguei a ordem de chamada para Leonora, deixei um por último de propósito.
O que nunca esqueci, o tal José.
V
Uma qualidade que possuo até hoje é minha capacidade de guardar segredos. Posso ouvir a confissão de qualquer um, e não falo, nem comento sobre o que ouvi. É um mérito para poucos. Foi sabendo em ouvir as pessoas que tive sucesso profissional. Nunca fui daqueles vendedores tagarelas, que exaltam a mercadoria ou o produto do cliente, sem dar a devida oportunidade que o cliente pense. Esse tipo de vendedor só concretiza sua vida em cima dos clientes incautos. Já vi muito vendedor perder uma venda certa porque não teve o momento do fechamento; o cliente queria comprar, mas ele não percebia esse momento e continuava falando. Em suma, o cliente ficava chateado e fechava com outro vendedor.
Ganhei muito em cima desses vendedores auto suficientes. Enquanto eles estavam bebendo e contando mentiras, eu ia visitar os clientes. E minha tática era deixa-los falar. Ficava sentado enquanto absorvia as necessidades que os clientes tinham. E sabia a hora de fechar a venda. Nunca falei muito, mas sempre fui bem sucedido no que fazia.
Por isso, hoje sou um empresário conhecido, e respeitado por causa da minha discrição. O engraçado que o causador dessa minha timidez estava na salinha com outros candidatos, aguardando que eu o entrevistasse.
E se fosse como imaginei, ia agir como na vida. Ia deixa-lo falar à vontade. Para depois pensar como seria o fechamento.
VI
Mandei-o que sentasse à minha frente. Já havia entrevistado os outros candidatos, e vi várias facetas nessa manhã. Havia o convencido, o que era um vendedor audacioso, um nem falou - só gaguejou, e assim por diante. Fiz essas entrevistas só para preencher o tempo. Pra dizer a verdade, me preparava para entrevistar o sujeito que, por mais inapto que fosse, ia ser admitido.
Ele entrou na minha sala como o sujeito mais humilde na face da terra. Trajava um terno que deve ter pertencido ao avô dele. Sentou na cadeira em frente e pôs em cima da mesa o papel com seus dados profissionais.
Ficamos cara a cara. Era a cara do pai dele mesmo, pensei. Peguei o seu cadastro e fingi que lia. Sabia que ele me olhava. Deixei que olhasse por um bom tempo. Talvez me reconhecesse de algum lugar, mas era bem provável que não soubesse de onde.
Era assim que funcionava. Você que empresta nunca esquece desse dinheiro, e aquele que pegou emprestado, não se lembra da dívida.
Pacientemente, aguardei que ele dissesse algo, do tipo: "Ei! Não te conheço de algum lugar? Você não é aquele menino que..."
Nada foi dito. Cinco minutos se passaram, e o silêncio imperou na minha sala. Ele só me observava, curioso, como todos candidatos ansiosos pelo emprego observam quem que mandava naquele espaço.
O silêncio estava constrangedor, e resolvi quebra-lo com uma pergunta:
- Você trabalha com vendas há quanto tempo, José... José Fernando...
(Ou apenas Fernando. Nando. Ou Zé. Como quiser me chamar...)
- Dez anos - respondeu ele, timidamente. Quem diria. Não o imaginava tão servil. - Antes fui bancário, trabalhei doze anos no banco...
Cortei-o.
- O que me interessa é sua experiência nas vendas. O que me diria sobre sua estratégia para o sucesso na venda?
- Bem... - ele gaguejou! E o ouvi discorrendo o mesmo blábláblá que todos iniciantes usam quando querem ver sua carteira assinada. Cruzei os dedos por cima da sua ficha, e fiz questão que ele notasse o meu relógio que valia um apartamento no centro. Nesse momento, o dinheiro falava alto. Ele era submisso porque era pobre. Porque precisava desse trabalho para sustentar sua família. E eu ia emprega-lo. Ia sim. Queria vê-lo feliz.
Ele estando feliz, eu ia ser feliz também.
Quando ele terminou com sua ladainha, fingi desinteresse. Por dentro, eu tremia, meu coração batia descompassado, mas uma coisa que aprendi na minha vida foi manter minha aparência em extrema neutralidade. Conseguia manter meu equilíbrio, mesmo que minha cabeça estivesse a mil, e a ponto de enfartar.
Peguei sua ficha e perguntei:
- Você é casado?
- Sou, há vinte e dois anos.
- Tem filhos?
- Tenho uma, que fez 22 anos mês passado.
- Ela estuda?
- Trabalha de manhã como atendente no consultório médico, e de noite faz faculdade de Direito.
- Bom... É bom ter uma família... Vocês são religiosos?
Ele deu um pigarro, e respondeu:
- Eu sou católico, mas não frequento missa. Minha esposa e minha filha são evangélicas.
- Muito bom ter Deus dentro do seu coração - eu, o agnóstico, comentei secamente. Li em voz alta o que ele escrevera na sua ficha: - Você tem o segundo grau, nunca deixou de votar, serviu o quartel, sua ficha no Serasa e SPC estão OK... Ah, mora em Niterói... Rua Lemos Cunha?
- Sim, senhor, em Icaraí.
- Casa própria?
- Apartamento próprio, sim. Herdei dos meus pais.
- Eles são vivos?
- Infelizmente não, senhor. Minha mãe faleceu em 1985, e meu pai morreu em 2003.
- Bem, isso é muito chato. Vou seguir aqui... estudou em qual colégio?
- Guilherme Briggs e depois no Liceu Nilo Peçanha.
- Dois colégios públicos. Mas isso não vem ao caso, não é mesmo? Vou fazer uma pergunta. É necessário que seja o mais franco possível na resposta, porque dependo dela para saber se posso contar ou não com você na minha empresa.
Ele esperou minha pergunta. A testa dele porejava de gotinhas de suor, mesmo com o ar condicionado gelando minha sala.
Se eu estava nervoso, ele estava mais. Só que eu sabia porque estava nervoso, e ele devia só sentir. O ambiente estava pesado. Fiz de propósito, claro.
Tirei meus óculos e fitei-o nos olhos, sem piscar. Ele passou a língua em cima dos lábios ressecados.
- No ramo de vendas, existem amigos?
Ele juntou as sobrancelhas, e a testa suada ficou enrugada. Sabia que era um teste, e sabia que uma resposta errada seria um "espere nosso telefonema, agradecemos sua presença."
Ele pensou, retorceu mais ainda a testa e as sobrancelhas, enquanto eu mantinha meus olhos fixos nele, com os dedos cruzados sobre a mesa.
- E aí, José Fernando. Aqui não é nenhum programa de perguntas e respostas, mas tem um tempo para responder.
- É... vou ser muito sincero com o senhor... posso falar de mim, não dos outros... - A hesitação dele me inebriava! - Na minha opinião, o melhor amigo do vendedor é o seu bolso.
- Está sugerindo que, na venda, é cada um por si e Deus por todos?
- Não seria dessa forma. Se eu me preocupar com o problema do meu colega, eu não vendo. E se não vender, o dinheiro não entra no meu bolso.
Fiquei quieto, fingindo que degustava aquela resposta. Me surpreenderia se fosse diferente. Decidi fazer uma última pergunta, a definitiva, a que ia admiti-lo:
- Teria algum problema com sua família se fosse necessário fazer algumas viagens a negócio?
- Como assim?
Burro, pensei. Sempre foi burro!
- Às vezes tenho que visitar clientes em outros Estados, e normalmente levo um vendedor comigo. Sua família faria objeções se precisasse se ausentar por uns dias, no máximo uma semana? - Antes que ele respondesse, acrescentei: - Claro que essa viagem é remunerada, porque não é sempre que efetuo o negócio na hora.
- Sem nenhum problema, senhor.
Peguei a caneta e rabisquei qualquer coisa na ficha. Disse depois:
- Espere lá fora. Sabe que tem concorrentes para essa única vaga. Vou ser sincero contigo. Gostei do seu jeito. Acredito mesmo que terá sucesso na empresa. Mas não posso definir nada, não sem antes falar com meu supervisor e gerente. Aguarde na salinha, minha assessora vai servir um lanche para vocês.
- Obrigado, senhor...
- Geraldo Nunes.
Esperei uma reação. Mas o rosto dele continuou da mesma forma. Inerte. Bovino.
Estendi a mão e ele apertou-a efusivamente. O contato daquela mão me enojou, mas me limitei a sorrir. Sempre fingi bem.
Quando ele saiu e fechou a porta atrás de si, arriei na minha cadeira e quase vomitei na lixeira.
VII
Eu sei que para vocês que estão lendo meus relatos agora, na certa não entendem do que se trata. Calma que vou chegar lá, no ponto crucial. Primeiro quero mostrar como me senti, depois vou contar o meu horror, para finalmente depois contar do meu alívio.
Serei julgado pelos meus atos, mas e os atos que aconteceram comigo, foram julgados? Que nada. Ficou por isso mesmo. Todo mundo rindo, todo mundo seguindo sua vida sossegado, enquanto que eu precisei, sozinho, sem ajuda de ninguém, me levantar, sacudir a poeira e seguir adiante.
Tem uma frase que diz: O tempo é o melhor remédio. Pode ser para alguns, porque para mim, a doença continuou persistindo, e nenhum remédio conseguiu combatê-la.
Durante minha vida toda, nunca desabafei, falei, das coisas que aconteceram comigo. Devido ao meu silêncio, meus parentes e os poucos amigos sempre acharam que tudo estava bom para mim. Olharam a casca, o miolo ninguém tinha acesso.
Nunca achei que ia poder extravasar, gritar, comemorar, chorar, como todo mundo faz. Via minha idade indo, chegando aos 50, e sempre com pesadelos, medo, insegurança. Treinei bastante para macular meus defeitos, mas isso não bastava.
Bastou o momento que o revi. Que falei com ele. Que o fiz se lembrar.
E quando isso aconteceu comigo, foi como um orgasmo preso.
Pela primeira vez na vida, me senti vivo em tudo. Vivo e livre!
VIII
Na sala de reunião, eu tinha anotado o nome do aprovado. Que não foi unânime.
Leonora, minha assistente, disse que o fulano de tal era mais gabaritado, o meu gerente disse outro nome, e o supervisor manteve-se quieto. Ele nunca ia contra minhas decisões.
- Entendo que cada um tem sua opinião já formada, e um candidato escolhido. Mas quero lembra-los quem manda aqui dentro. Quero que vocês se perguntem se eu estou preocupado com suas escolhas.
- Geraldo - disse Elias, meu gerente. - Se já escolheu, pra que quer nossa presença na reunião?
Elias era meu gerente há anos, e já me habituei com seus rompantes. Leonora era outra. Intrometida, fiscalizava o que os vendedores faziam nos plantões e me passava relatórios contando tudo. E Vander, meu supervisor, era um come-quieto, que cumpria tudo o que eu mandava. Até de enfiar a cabeça no vaso sanitário, se eu ordenasse.
- Vou simplificar onde quero chegar. Hoje vou admitir o candidato José Fernando Menezes, e a partir de amanhã, ele vai ocupar seu cargo, Vander.
O supervisor pulou da cadeira assustado.
- Mas,mas...
- Nada de mas. Amanhã você será nomeado meu supervisor da área estratégica, que trata dos nossos negócios no Rio. José Fernando, ou Fernando, ou Zé como queiram, será o supervisor estadual.
E antes que alguém se opusesse ( como se pudessem), me levantei e ordenei a Leonora:
- Avisa aos candidatos que já foi escolhido o novo supervisor.
Saí. Não via a hora de iniciar o trabalho com o novo funcionário!
IX
No seu primeiro dia de trabalho, o novo supervisor foi instalado em uma pequena sala ao lado da minha. Mandei que desocupassem o antigo depósito para criar essa salinha especialmente para que ele se sentisse em casa. E na parede lateral da minha sala, só um vidro nos separava, e eu podia ficar de olho nele também.
Tinha que dar corda para ver se o peixe ia fisgar o anzol, pensei. Tirando o primeiro dia, quando estive em sua sala para desejar boa sorte e sucesso, no restante da semana mal apareci no escritório.
O bom de ser dono de uma empresa é essa. Não preciso dar satisfações do que faço ou deixo de fazer. Liguei para Leonora e a orientei que ficasse de olhos bem abertos nos funcionários, especialmente no novo supervisor. Precisei incluir o novo funcionário para que Leonora não desconfiasse de nada, mas na verdade pouco me importava se ele ia trabalhar com dedicação ou ficar apenas jogando conversa fora. Eu só o queria ao meu lado. Onde eu não o perdesse mais de vista!
Nessa minhas pequenas férias, aproveitei para organizar tudo. Fiquei isolado de todos. Ninguém me ligou, nem souberam onde estive. Mas na verdade, eu era tido como o parente estranho, o parente rico, o parente esnobe. E era mesmo. Se fosse bonzinho, ou tivesse pena dos meus primos e irmãos desocupados, ia à falência em dois tempos.
Quando tem os aniversários das minhas tias ou de um irmão meu, sou o último a chegar e nem esquento cadeira. Enquanto minha parentada entorna suas cervejas e trucidam os salgadinhos gelados, eu chego, cumprimento o aniversariante e vou embora. Sei que falam mal de mim. Que sou o eremita. Que a única coisa que faço para a família famélica é o churrasco do mês, que me permito em recebê-los, mesmo a contragosto, mas às vezes você precisa parecer sociável nos olhos dos outros. Eu tenho uma casa especialmente para isso, na praia de Itaipuaçu. Eu sei que meus parentes e os falsos amigos aguardam ansiosamente, chova ou faça sol, o primeiro sábado do mês, para saborearem meu delicioso churrasco e se entupirem do chope gelado.
Ainda bem que nenhum urubu me ligou pra pedir nada, porque ao contrário de outras vezes, quando me isolava do mundo e ficava trancado em casa lendo ou assistindo filmes, dessa vez tive bastante trabalho. Quando vinha a noite, eu largava tudo, ia tomar banho e ficava estirado na cama, com os ossos doendo. Esse que é o mal da falta de exercício. Faço caminhada, às vezes corro pela orla, mas trabalho braçal, de manhã até de noite, era novidade para mim.
Mas valeu o sacrifício dos meus músculos em pandarecos, da dor nas costas e nas pernas. Ia ter bastante tempo para me recuperar depois. O importante é que ficou pronto.
X
Achei interessante o relatório que Leonora fez durante minha ausência. Ela especificou cada detalhe da conduta dos meus funcionários. Vi que tinham dois que iam ser demitidos.
Não me prolonguei naqueles que já conhecia, e prestei atenção no novo funcionário. Me deu a impressão que Leonora não gostou muito dele. Ela anotou vários detalhes nos primeiros dias dele.
QUANDO ATENDE SEU CELULAR PARTICULAR, COSTUMA FICAR MAIS DE 30 MINUTOS FALANDO NELE. - Era provável que falasse com a esposa. Dando notícias do novo emprego. Da imensa sorte de conseguir a vaga de supervisor estadual.
UMA MOÇA VEIO VISITA-LO DUAS VEZES NA SEMANA. - Agora era a filha. Não acredito que seja uma namoradinha, ele não tem cacife para bancar uma ninfeta consumidora. Pena que não a conheci. Tenho curiosidade de saber como ela é.
PERCEBI QUE TEM MANIAS DE GRANDEZA. JÁ PAROU NO SALÃO DE VENDAS E O ASSUNTO SEMPRE GIRA EM TORNO DE LUXO. - Ora, Leonora, ninguém é obrigado, porque é pobre, a querer ficar pobre para o resto da vida. Deixe o homem sonhar. Sonhar não custa nada!
QUANDO SAI PARA O ALMOÇO, LEVA MAIS DE DUAS HORAS NA RUA. - Fácil. O homem tem espírito de vendedor. E vendedores não gostam de ficar presos em escritórios. Deixa que ele respire o ar puro, veja gente andando na rua, beba um chopinho. Deixa o homem desfrutar desses momentos. Por que depois, pode ficar meio difícil ele sair tanto como agora.
E tinha outras coisas sem importância. Larguei o relatório e decidi que precisava conversar com o novo supervisor.
Ele entrou na minha sala e convidei-o para se sentar.
- Fernando, no sábado vamos fazer uma confraternização da empresa no clube Aimorés. Gostaria que levasse sua família.
- Claro, é claro! - disse ele, quase babando.
- E é bom que se acostume com nossas reuniões. Prezo muito quando o funcionário leva a família junto. Percebeu como somos unidos?
O idiota mentiu, claro. Nunca fiz questão de me enturmar com os funcionários. Já bastavam as confraternizações que aconteciam de dois em dois meses:
- Ah, sim, senhor! E aproveito para mais uma vez agradecer toda a confiança que o senhor depositou em mim e ao meu trabalho e...
- Sábado, não se esqueça - Cortei o discursinho que ele começou. Me dava ânsias de vômito de escutar sua voz. - E vamos ao que interessa! Aos negócios!
Ele era grandalhão, e pela idade, meio desajeitado. Deu um meio-sorriso e pediu licença e saiu. Respirei fundo. Sábado ia vê-lo ao natural, ao lado da sua família. Precisava ver isso.
XI
O clube Aimorés, para quem não conhece, fica na Taquara, em Jacarepaguá. É um lugar amplo, com um campinho de futebol, mesas de sinuca e totó. Pra quem gosta, tem mesa de ping-pong. Tem um lugar destinado para crianças pequenas com orientadoras tomando conta e incentivando várias brincadeiras.
Mesas de quatro cadeiras foram postas nos jardins do clube. Era um sábado ensolarado, e muitos vieram de biquinis e sungas. Um deles era o novo supervisor. Chegou com a família em um velho Fiat, encharcado de suor. Quando viu a piscina, a primeira coisa que fez foi tirar a camisa e ficou só de bermudão. Saiu correndo com aquele corpão cabeludo, e a barriga proeminente balançava a cada pisada na grama, até que mergulhou de cabeça na piscina cheia de crianças.
Me aproximei dele e o novo funcionário parecia que estava em casa, completamente à vontade, enquanto espalhava água com as batidas que dava com seu braço gordo como se estivesse nadando em uma olimpíada.
- Olá, chefe! - disse ele, descontraído.- Não vai mergulhar? O calor tá de rachar!
Olhei-o e confesso. Minha vontade era dar as costas e tentar apagar da memória aquela visão dantesca; o homem era calvo e fiapos do seu pouco cabelo colaram na testa. Não fazia a barba há pelo menos dois dias, e fios grossos da barba brotavam pelo rosto redondo. Quando mergulhou, um muco verde ficou pendurado na narina direita, e ele nem percebeu.
- Eu não gosto de piscinas - eu disse. Perto dele, eu era um nanico. Minha estatura sempre foi magra, agora que criei uma massa muscular, mas devido à idade. Posso me comparar como Davi e Golias... E não dizem, posso até me enganar, mas os mais fracos são mais inteligentes que os brutos.
Minha vantagem era essa. Eu gosto de pensar. E tenho tempo para pensar.
A esposa e filha dele continuavam paradas, meio sem jeito, ao lado do Fiat. Fui até elas e me apresentei.
- Então vocês são a família do meu novo supervisor - tentei ser o mais simpático possível, e acho que consegui. A mulher dele se apresentou, dizendo que seu nome era Eunice e a filha, Isabela.
Olhei a filha dele. Era magra e alta, e tinha espinhas no rosto. Pelo jeito como olhava os pés, notei que era bastante tímida. Estava incomodada de estar ali, no meio de uma multidão que não conhecia.
Por um breve instante, me simpatizei com ela. Ela se parecia comigo, tempos atrás, uma época que tentei apagar da minha cabeça, mas que insistentemente ressurgia feito fênix.
Ele saiu da piscina encharcado e pegou a sua camisa, que Eunice segurava, obediente.
- Esse é o meu chefe - disse ele, descontraído. Nada como um mergulho para desinibir um falastrão! - E não é porque estou aqui na frente dele, mas posso dizer que o Sr. Geraldo, em matéria de chefia, é nota dez!
Ele pôs a camisa e olhou ao redor. Pelo deslumbramento, dava a impressão que era a primeira vez que pisava num lugar como o clube. Como eu não estava nem um pouco disposto de ficar ali parado enquanto o energúmeno exercitava seu lado baba-ovo, dei uma desculpa qualquer e disse para se divertirem.
Sentei na mesa com meu irmão mais velho, o Gabriel. Levei-o por mera consideração pela sua recém- separação.
- Gilberto - recebi seu telefonema na noite anterior. Sua voz era puro desespero. - Amanda me largou! Pegou as roupas e vazou de casa!
Estranhei que ela não tivesse feito aquilo antes. Gabriel era o tipo do parasita que se baseava no único irmão bem sucedido financeiramente - que no caso, sou eu, - e nunca parava em nenhum emprego. Anos atrás, fui obrigado a emprega-lo na minha empresa depois que Gilda, minha irmã, insistiu em memória dos nossos pais. Fiz o que ela pediu, e Gabriel não ficou nem dois meses. Primeiro se valeu pelo fato do irmão mais novo ser o patrão, e por último, ao invés de vender, desfazia as vendas! Resolvi ignorar as memórias paternas e chutei o balde.
Na época, Gabriel já era casado com Amanda, e desde esse tempo, o relacionamento deles não ia bem. Foi ele que me sugeriu para me casar. Bem, tá aí o exemplo do meu irmão mais velho. Agora só Gilda era casada, e morava em São Paulo com a família, e o caçula Giovanni, que morava em Brasília.
Agora sobrou para mim o transtorno do meu irmão. Vocês que estão lendo vão imaginar: "Esse Geraldo é um monstro! Despreza o próprio irmão!" Eu posso responder com uma pergunta: "Como me afeiçoar com alguém que nem sabia que você existe até um bom tempo atrás?" Antes que me critiquem, prestem atenção no que escrevo. Prometo a vocês que não vou omitir absolutamente nada, e o que não estão entendendo agora, vão saber depois.
Na mesa, além de Gabriel (não eram onze horas, e já estava embriagado), Leonora foi com sua amiga Bianca. Nunca me intrometi na vida particular dos meus funcionários, meu lema é que cada um sabe o que faz da vida. Leonora, como minha assistente, era eficaz. Ela procurava disfarçar para todo mundo sua verdadeira opção sexual. Temia que os vendedores fizessem chacotas se soubessem que vivia com uma mulher 15 anos mais jovem que ela. Particularmente, eu achava uma bobagem. Infelizmente ainda existem preconceitos quanto às opções sexuais de cada um, mas dentro da minha empresa todos sabiam que qualquer tipo de discriminação, que fosse por sexual, ou se a pessoa era gorda, negra, judia... bem, no mural tem exposto minha primeira norma que diz em letras garrafais: EXTREMAMENTE PROIBIDO QUALQUER TIPO DE PIADA, INDIRETAS, OFENSAS, A QUALQUER COISA. AQUELE QUE NÃO CUMPRIR MINHA ORDEM E FIZER NO AMBIENTE DE TRABALHO, SERÁ DEMITIDO SUMARIAMENTE, SEM DIREITO A SEGUNDA CHANCE.
Quer me ver irritado? Brinca com os mais fracos. Não quero bancar o herói das minorias, mas aprendi na vida que se você tem ajuda, a discriminação cairia bastante.
XII
A melhor parte de uma festa regada a bastante bebida e comilança, é ver seus funcionários se divertindo com a família. Eu, que não bebo, assistia sentado da minha mesa os tombos, as brigas, os vendedores querendo vender seus peixes a eles mesmos. Quando botavam uma música funk, via as esposas dos caras rebolando ou se esfregando nas batidas do pancadão.
Havia uma pista de dança que ficou lotada, no momento que o DJ pôs um batidão. Detesto esse tipo de música, mas a maioria adorava.
Vi meu novo supervisor se esbaldando na pista de dança. Rebolava suas ancas gordas, e mexia com as mulheres que estavam sozinhas. Uma delas segurou sua mão, e ele, na maior cara de pau, na frente da mesa que Eunice e Isabela sentavam, agarrou a cintura da mulata que se esfregou nele na música anterior. Olhei a cara de  desagravo que Eunice fez, e o rosto vermelho e cheio de espinhas que a filha mostrava. Havia vergonha pelo que aquele homem fazia, mas nenhuma delas era capaz de dar um simples comentário sobre aquilo.
Enquanto elas se envergonhavam, eu fiquei satisfeito com aquela cena. Por mais que os anos passem, o caráter das pessoas permanecem. Nunca mudam. Se você nasce com uma índole boa, não vai ser as intempéries da vida que modificarão isso. Se nasce ruim, morre pior ainda.
Ele largou a mulata e se juntou com alguns vendedores. De onde eu estava, podia ouvir o vozeirão dele, contando piadas obscenas e fazendo sua plateia cair na gargalhada. Pra mim não era surpresa, ele sempre fora assim. Gostava de ser o centro das atenções.
O outrora candidato humilde, que suou na entrevista, tirou sua máscara e mostrou o que era na verdade. Um tremendo filho da mãe!
Nas confraternizações da minha empresa, fazíamos sorteios de televisão e outros eletrodomésticos, para incentivar as vendas. Nesse dia, armei de propósito que meu novo supervisor ganhasse o prêmio máximo.
Leonora era a encarregada de misturar os papéis com os nomes dos funcionários. Ela segurava um saco preto e disse, no microfone:
- Agora... Vamos ver quem vai levar uma TV Smart 60 polegadas...
Balançou o saco e passou para mim. Eu enfiei a mão no saco, mas já tinha escondido, o papel com o nome dele. Passei para ela, que disse:
- José Fernando! - Ela estranhou o papel amassado, me olhou desconfiada, mas não disse nada. E nem podia. Quem pagou pela TV fui eu.
O novo supervisor, que estava entre dezenas de participantes, pulou e agitou os braços no ar, gritando:
- Caramba! Nunca ganhei merda nenhuma na minha vida!
Ouvi um vendedor comentando:
- Que sortudo! Mal entrou na empresa e já faturou o melhor prêmio!
Ele também ouviu o comentário que Lindomar, o vendedor fez. E aconteceu o que previ.
Lindomar era um sujeito magro, calvo e usava óculos de grau. Devia medir um metro e sessenta. Um sujeito extremamente frágil.
O novo supervisor troglodita aproximou-se dele. Pelo seu tamanho, Lindomar nem apareceria na foto. Incentivado pelas caipirinhas e cervejas que bebera, disse, ameaçando:
- Tá querendo sugerir alguma coisa, "filé de borboleta"?
Alguns vendedores, aqueles da mesma laia e filosofia do novato, gargalharam. Lindomar pareceu perdido com aquele brutamontes parado na sua frente.
- Não... - disse ele, afinando a voz. - Eu só...
- Você o quê, fiapo de gente? Não tem noção de perigo?
Eunice se aproximou e disse, timidamente:
- Zé, deixa o moço em paz!
Pela cara da esposa, aquela cena era habitual.
- Não se mete com que não foi chamada, Eunice - ameaçou o brutamontes. - Minha conversa é com esse fedelho aqui!
Lindomar estava apavorado. Tinha mais de cinquenta anos, e o outro o chamou de fedelho!
- José Fernando - disse Lindomar, buscando um respingo de coragem. - Não vejo motivo para toda grosseria...
Leonora tocou meu braço e disse, assustada:
- Não vai fazer nada, seu Geraldo?
Tirei a mão dela do meu braço e falei:
- Quero ver até onde chega esse circo todo.
- E se ele bater no Lindomar...
- Ele não vai bater - eu disse. Mas podia completar "agora".
O ser humano convive com seu caráter desde que nasce até sua morte. Não muda. A pessoa é o que é, e ponto final.
Monteiro, outro vendedor antigo na minha empresa, se meteu entre o novo supervisor e Lindomar.
- Vamos acabar com essa discussão agora - disse ele, autoritário. Não era forte como o truculento novato, mas tinha personalidade forte. - Ei, Zé! Acabou de entrar na empresa e já tá arrumando confusão?
O novo supervisor encolheu. Isso. Encolheu. Sempre desconfiei que os valentões tremem quando alguém de personalidade forte os encara.
O mais forte só se vale nos fracos em espírito. Como eu, no passado.
Naquela roda de vendedores bêbados estava faltando uma pessoa, mas que não demorou muito. Mais alto que todos juntos, meu irmão, o intrometido, se infiltrou na roda cambaleando e segurando um copo cheio de cerveja. Vi Leonora balançar a cabeça e murmurar:
- Só faltava ele...
- Agora não falta mais.
Aos gritos de ordem, Gabriel esbarrava nos vendedores e dizia:
- Bando de pé d'água! Ou param agora com essa babaquice ou falo com o patrão de vocês para que nunca mais patrocine nenhuma festa, nem a de fim de ano!
Agora o meu intrometido irmão era o meu porta-voz. Se fosse a tempos atrás, ficaria furioso. Mas confesso que essa festa estava sendo especial para mim. Pela primeira vez, me diverti nesse tipo de reunião. Como gostei de analisar a mediocridade da alma humana.
Eunice puxava seu marido pelo braço, e a expressão que seu rosto tinha era o de remorso. Mas decifrei rápido esse remorso. Não era pelo seu porre, nem por ter ameaçado o indefeso Lindomar. O arrependimento era pelo medo de perder o emprego "mais fácil" que ele arrumou.
Eu e Leonora estávamos na mesa quando ele chegou, ainda com a esposa a tiracolo e sua filha cabisbaixa atrás deles. Pediu licença e sentou-se ao meu lado. Quando falou, evitou meus olhos, mirava seu tênis encardido:
- Chefe... Peço que me perdoe pelo que houve há pouco...
- Esqueça - eu disse, sorrindo. - Isso aí acontece sempre.
- Não sei o que houve comigo - disse ele, ainda evitando me encarar de frente. - Nunca agi assim com ninguém! Sempre fui um cara manso, pacato. Detesto qualquer tipo de agressão, de violência. Tenho muita raiva de pessoas que praticam covardia com pessoas indefesas...
Quase que gritei na cara dele: Para de falar! Se abrir essa boca imunda mais uma vez, vou acabar vomitando na sua cara!
Escrevi isso agora, depois que tudo aconteceu. É mais fácil colocar nossas ideias em ordem quando estamos tranquilos, na nossa casa, sozinho, com o word ligado e transcrevendo o que houve para a posteridade. Mas naquele dia, quase perdi minha paciência quando ele veio com sua ladainha. Vocês não imaginam como controlei meus instintos, com o troglodita ao meu lado!
Voltando à festa, eu...
Depois eu conto. Ainda tem mais um detalhe que aconteceu na festa, e dessa vez, tem a participação especial do meu irmão mais velho. Não posso omitir isso das minhas memórias.
Por isso, vou dedicar esse fato a um novo capítulo. Preciso escrever sobre isso, porque vai ter influência no que aconteceu depois.
XIII
Agora imaginem a cena. Um clube campestre, convidados embriagados se empanturrando de carne e bebidas, crianças brincando com orientadores contratados ou na piscina, as esposas dos vendedores conversando entre elas numa rodinha regada a muita fofocalhada, música tocando a todo volume e pessoas na pista dançando, todas mesas ocupadas com meus funcionários e uma mesa especialmente preparada para mim e minha assistente, que levou sua amiga como companhia. Hei de registrar que nessa mesa, nunca, mas nunca mesmo, nenhum vendedor, supervisor ou gerente sentou-se nela. Não era uma ordem, mas era implícito do meu desconforto de dividir a mesa com funcionários - à exceção da minha assistente, além de ser a minha funcionária mais antiga, era meu braço direito. Fechando o quadro que descrevi, imaginem a cara dos meus funcionários quando viram o novo supervisor sentado na minha mesa, ao meu lado, falando comigo! Claro que ficaram surpresos, eu sou tido como inatingível, onipresente. A inveja em cima do novato deve ter sido unânime!
- Não quero que pense mal de mim, chefe - ele continuava com sua ladainha e ainda evitava me olhar nos olhos. - Preciso muito desse emprego... É difícil, quase impossível, que alguém da minha idade consiga um trabalho gratificante como tenho hoje.
- Já disse, não se preocupe com isso. Tem que se preocupar agora é como vai levar a televisão para casa. Ela é sua, esqueceu?
Ele olhou a grande caixa fechada da Smart e fez a pergunta que eu já esperava ouvir; vindo de um sujeito daqueles, estranharia se fosse o contrário:
- Ué... Não entregam em casa?
Eunice e a filha dele, ambas em pé ao lado dele, disseram ao mesmo tempo:
- Claro que não!
- E como vou levar esse trambolhão no meu carro? - comentou o ingrato.
Eu acudi o imbecil:

- Vou providenciar que entreguem na sua casa, Fernando. Não se preocupe com isso e se divirta.

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