I
Também
podia ter escrito: "A vingança é um prato que se come frio." São
tantas as frases que falam de vingança que se fosse enumera-las não faria mais
nada durante alguns dias. E não é isso que quero. Não sinto a mínima vontade e
nem tenho inspiração em publicar uma enciclopédia de frases e histórias sobre vingança.
Não sou nenhum Conde de Monte Cristo, mas da forma como me senti quando tive o desprazer de
revê-lo, tivesse incorporado um pouco desse personagem de Dumas.
Por
quê? - Talvez estejam se perguntando enquanto estão lendo a minha singela
confissão -, logo você, Geraldo Nunes, um empresário de sucesso, o grande benfeitor das causas mais nobres, o último
solteirão mais cobiçado do Rio de Janeiro, decidiu escrever sobre esse
sentimento repugnante, sórdido, que uma pessoa possa guardar dentro de si, como
essa da vingança?
Eu
podia omitir esse fato, mas não seria honesto comigo, e nem com vocês.
Sinceramente, o máximo que cheguei perto em uma escrita foi na assinatura dos
memorandos que distribuía aos funcionários da minha empresa. Nunca tive jeito
em escrever e nunca tive nenhuma pretensão de publicar um livro. Minha praia
sempre foi a venda. Só que agora sinto necessidade de contar, o que aconteceu
comigo no mês de março de 2008. Provavelmente será a primeira e última vez que
me arrisco nessa empreitada dolorida.
Aos
meus familiares e amigos que estejam lendo: Não reparem dos erros ortográficos
e das divagações que faço. Espero que seja bem claro no que quero dizer. Ou
melhor, no que vou contar aqui.
Nada
como um dia depois do outro. Quando penso nessas palavras, chego à conclusão
que fazem todo sentido. Talvez não façam durante uma boa parte na sua vida, mas
uma hora você se dá conta e diz: "É isso mesmo, como pode ser isso, mas
nada como um dia depois..."
No
primeiro parágrafo escrevi sobre a vingança. E é disso que escrevo na minha
confissão. Sem querer ser um catedrático, coisa que nunca fui, mas é uma tese que explica da suprema vingança e
suas consequências. Do fato que nunca esqueci das coisas que fizeram comigo, e
da surpresa que tive das voltas que o destino deu na minha vida, principalmente
no improvável imprevisto que me entregou de bandeja meu maior desafeto, o
causador dos meus infortúnios. E do momento que paguei tudo que ele me fez,
com minhas mãos.
E
se não escrevesse sobre isso, minha vingança ficaria incompleta. Quero que as
pessoas, as que um dia passaram o que passei em um momento na sua vida leiam
para que saibam que nada na vida é definitivo, só a morte. Ou quem sabe também
nem a morte. Não são os espíritas que vivem apregoando que ninguém morre,
apenas fazem uma passagem só de ida a um plano superior...
Como
sou leigo, não vou falar disso.
Só
vou falar do que houve de concreto, real, que está aqui entre nós.
E
o desfecho de como sanei uma ferida profunda que nunca cicatrizava vinda de um
distante passado.
II
Para
quem não me conhece, tenho um grande escritório de vendas que ocupa dois
andares inteiros na Avenida Treze de Maio, ao lado da Cinelândia, no centro do
Rio. Ali trabalham para mim mais de 30 vendedores registrados que me
proporcionam um ótimo padrão na minha vida. Nesse exato momento que estou
escrevendo, tenho 45 anos, nunca me casei, apesar de ter tido algumas namoradas.
Acho
engraçado como as pessoas viviam se preocupando com minha eterna solteirice. Principalmente
meus irmãos, os parasitas que viviam à minha custa, casados e com filhos, que
se mostravam preocupados:
-
Quando vai parar para pensar em se casar?
-
Estou bem assim - respondia. Esse assunto sempre vinha à baila no churrasco
mensal que eu promovia para minha família na minha mansão em Camboinhas.
-
Mas a vida de casado é tão bom...
Respondia
de bate pronto:
-
Se casamento fosse mesmo tão bom quanto pinta, não haveria nenhum divórcio!
-
Não adianta convencê-lo, Gilmonte. Quando Geraldo morrer, seu dinheiro vai ser
dividido pra nós da família. Isso não tem como escapar - Dizia e repetia sempre
o engraçado e alcoólatra do meu irmão do meio, Gabriel, sempre em briga com sua
esposa, Ana Méri.
O
negócio na minha família sempre foi dinheiro, a mola que move o mundo. Mas eles
mal sabiam que eu tinha planos para minha fortuna. - "Bem, se estão lendo essa confissão,
agora sabem. E certamente não estão nem um pouco satisfeitos!" - Sabia que
minha família me via como o ovelha negra. Desde criança sou assim, retraído,
tímido, focado no meu trabalho. Comecei do zero e hoje tenho um grande
empreendimento. Nunca pedi ajuda a ninguém, aprendi na vida que só você pode
depender de si mesmo. Ninguém quer ajudar. É muito mais fácil querer te
atrapalhar.
E
esse meu jeito fechadão sempre incomodou as pessoas. Talvez alguns dissessem
entre eles que sou meio maluco. Bem, depois do que houve na semana passada,
eles não estão sem razão em desconfiar da minha personalidade secreta.
O
meu lado escuro sempre foi secreto, até que revi... depois digo quem tive o
prazer de rever. Mantive meu lado animal bem escondido. Minha postura diante da
sociedade sempre foi cordial, sorridente, que gostava de receber os amigos e
parentes para churrasco no fim de semana na minha casa.
Por
falar em churrasco, lá em casa eu que era o churrasqueiro. Ninguém mexia nas carnes,
nem nos espetos. Deixava-os na beira da piscina bebendo, mergulhando, enquanto
assava as carnes.
Com
certeza, eles nunca mais vão esquecer dos meus churrascos.
III
José
Fernando Menezes. Um nome bastante comum. Quantos Zés vocês conhecem? E
Fernando? Bastante. Tem José que odeia o nome, e quando se apresenta, só diz o
segundo nome. Oi, meu nome é Fernando. Pode me chamar de Nando. Ou pelo
sobrenome. Olá, sou Menezes. Só Menezes.
José
Fernando Menezes. Um nome comum para várias pessoas. Menos para mim. Esse nome
faz parte da minha vida. Um tempo que queria esquecer, mas os anos foram
ingratos comigo. Por mais que tentasse esquecer, mais as imagens ficavam
nítidas diante dos meus olhos.
José
Fernando Menezes. Podem existir milhares de caras com esse nome. Mas
dificilmente existirá dois Josés Fernandos Menezes que tem 47 anos, que tem
dentes cavalares, que moram na rua Lemos Cunha, em Niterói, que tem um pai que
se chama José Paulino Menezes e uma mãe que se chama Diva Menezes.
Não.
Seria coincidência demais. Para ser sincero, humanamente impossível.
E
não é que um dia parou na minha mesa uma ficha de inscrição, com solicitação de
emprego, de um certo José Fernando Menezes. Que ironia no destino! Me
surpreendo com o caminho e as voltas que a vida dá. Para terem ideia do que
estou dizendo, quando minha empresa abre uma vaga de trabalho, normalmente as
fichas vão primeiro para o supervisor geral, depois para o gerente de recursos
humanos, depois cai na mesa da minha assistente, que após uma sabatina com o
candidato, e o aprovando, me comunica que tem mais um funcionário. Sou como uma
ilha no escritório, mal tenho contato com os candidatos.
Mas
dessa vez, minha assistente estava de licença médica. Uma gripe, TPM, não sei
bem. Então, a ficha do candidato caiu na minha mesa, e como tínhamos urgência
em preencher o quadro de funcionários, analisei o curriculum vitae.
E
para minha surpresa, o que me chamou atenção primeiro foi a foto do candidato.
Uma sensação de dèjá-vu passou de relance quando vi o rosto quadrado, o nariz
protuberante, as sobrancelhas cerradas e o cabelo ainda preto e crespo. Era
quase o mesmo rosto de um certo homem que morou, em 1976, em Icaraí, na rua
Lemos Cunha, pai de...
Não
era mera semelhança. Do retrato, li o nome escrito abaixo.
E
mais uma vez vou escrever esse nome:
José
Fernando Menezes.
Nunca
me esqueci desse nome. E como poderia?
IV
Quando
cheguei no escritório, vi os candidatos sentados na salinha reservada, todos
aparentando um certo nervosismo. Fingi que não os tinha visto, passei pela
grande vidraça que separava os aposentos, dei bom dia aos funcionários e fui
para minha sala.
Minha
assistente, Leonora, apareceu nesse dia. Perguntei pela sua saúde, e brinquei -
para surpresa dela, já que dificilmente eu sorria, - que se ela não tivesse o
atestado médico, ia ser descontada pela falta.
Na
minha sala, me aconcheguei na minha cadeira de couro, liguei o laptop, bebi
café e verifiquei o ranking do dia anterior. Leonora entrou em seguida,
carregando uma pilha de fichas. Ela disse:
-
Posso ir entrevistar os candidatos?
O
bom de ser circunspecto, é que quando fazemos uma cara entediada, ninguém vai
desconfiar que algo mudou no seu temperamento. Como agora, quando olhei Leonora
por cima dos óculos e disse:
-
Hoje não, Leonora. Eu mesmo vou fazer as entrevistas.
-
Senhor! - Leonora arregalou os olhos. - Sr. Geraldo, o senhor nunca entrevistou
nenhum candidato!
Batuquei
a mesa com os dedos, querendo mostrar uma certa impaciência, e retruquei:
-
Sempre existe uma primeira vez.
-
O senhor... - Coitadinha, ela estava à beira das lágrimas. Por um instante,
fiquei com pena dela. Só por um instante! - Eu não pude vir nesses dias...
estava acamada... se pudesse, o senhor sabe, faria tudo...
Não
queria mais martirizar a pobre coitada. Se deixasse, ela ficaria implorando e
choramingando nos meus pés o dia inteiro. E tempo é dinheiro, esse era meu
lema. Pelo menos, até algum tempo atrás.
-
Não tem nada a ver com sua falta, Leonora. Quero participar mais na admissão
dos novos vendedores. Não desmerecendo seu trabalho, mas os últimos admitidos
não corresponderam com a expectativa...
E
blá blá blá, discorri sobre a nova visão participativa, que os vendedores
vendem mais quando sabem que o chefe está ao lado deles, os apoiando... e de
novo mais blablabla´...
Não
sei se Leonora ficou convencida com minha retórica, mas não me importava como
ela ficou. Afinal, eu pago os salários em dia, e a última palavra sempre será a
minha.
Teve
um tempo que não era assim... eu não tinha voz, ninguém escutava meus apelos,
minhas angústias... Mas hoje é outro tempo.
E
pela primeira vez, entrevistei os candidatos. Quando entreguei a ordem de
chamada para Leonora, deixei um por último de propósito.
O
que nunca esqueci, o tal José.
V
Uma
qualidade que possuo até hoje é minha capacidade de guardar segredos. Posso
ouvir a confissão de qualquer um, e não falo, nem comento sobre o que ouvi. É
um mérito para poucos. Foi sabendo em ouvir as pessoas que tive sucesso
profissional. Nunca fui daqueles vendedores tagarelas, que exaltam a mercadoria
ou o produto do cliente, sem dar a devida oportunidade que o cliente pense.
Esse tipo de vendedor só concretiza sua vida em cima dos clientes incautos. Já
vi muito vendedor perder uma venda certa porque não teve o momento do
fechamento; o cliente queria comprar, mas ele não percebia esse momento e
continuava falando. Em suma, o cliente ficava chateado e fechava com outro
vendedor.
Ganhei
muito em cima desses vendedores auto suficientes. Enquanto eles estavam bebendo
e contando mentiras, eu ia visitar os clientes. E minha tática era deixa-los
falar. Ficava sentado enquanto absorvia as necessidades que os clientes tinham.
E sabia a hora de fechar a venda. Nunca falei muito, mas sempre fui bem
sucedido no que fazia.
Por
isso, hoje sou um empresário conhecido, e respeitado por causa da minha
discrição. O engraçado que o causador dessa minha timidez estava na salinha com
outros candidatos, aguardando que eu o entrevistasse.
E
se fosse como imaginei, ia agir como na vida. Ia deixa-lo falar à vontade. Para
depois pensar como seria o fechamento.
VI
Mandei-o
que sentasse à minha frente. Já havia entrevistado os outros candidatos, e vi
várias facetas nessa manhã. Havia o convencido, o que era um vendedor
audacioso, um nem falou - só gaguejou, e assim por diante. Fiz essas
entrevistas só para preencher o tempo. Pra dizer a verdade, me preparava para
entrevistar o sujeito que, por mais inapto que fosse, ia ser admitido.
Ele
entrou na minha sala como o sujeito mais humilde na face da terra. Trajava um
terno que deve ter pertencido ao avô dele. Sentou na cadeira em frente e pôs em
cima da mesa o papel com seus dados profissionais.
Ficamos
cara a cara. Era a cara do pai dele mesmo, pensei. Peguei o seu cadastro e
fingi que lia. Sabia que ele me olhava. Deixei que olhasse por um bom tempo.
Talvez me reconhecesse de algum lugar, mas era bem provável que não soubesse de
onde.
Era
assim que funcionava. Você que empresta nunca esquece desse dinheiro, e aquele
que pegou emprestado, não se lembra da dívida.
Pacientemente,
aguardei que ele dissesse algo, do tipo: "Ei! Não te conheço de algum
lugar? Você não é aquele menino que..."
Nada
foi dito. Cinco minutos se passaram, e o silêncio imperou na minha sala. Ele só
me observava, curioso, como todos candidatos ansiosos pelo emprego observam
quem que mandava naquele espaço.
O
silêncio estava constrangedor, e resolvi quebra-lo com uma pergunta:
-
Você trabalha com vendas há quanto tempo, José... José Fernando...
(Ou
apenas Fernando. Nando. Ou Zé. Como quiser me chamar...)
-
Dez anos - respondeu ele, timidamente. Quem diria. Não o imaginava tão servil.
- Antes fui bancário, trabalhei doze anos no banco...
Cortei-o.
-
O que me interessa é sua experiência nas vendas. O que me diria sobre sua
estratégia para o sucesso na venda?
-
Bem... - ele gaguejou! E o ouvi discorrendo o mesmo blábláblá que todos
iniciantes usam quando querem ver sua carteira assinada. Cruzei os dedos por
cima da sua ficha, e fiz questão que ele notasse o meu relógio que valia um
apartamento no centro. Nesse momento, o dinheiro falava alto. Ele era submisso
porque era pobre. Porque precisava desse trabalho para sustentar sua família. E
eu ia emprega-lo. Ia sim. Queria vê-lo feliz.
Ele
estando feliz, eu ia ser feliz também.
Quando
ele terminou com sua ladainha, fingi desinteresse. Por dentro, eu tremia, meu
coração batia descompassado, mas uma coisa que aprendi na minha vida foi manter
minha aparência em extrema neutralidade. Conseguia manter meu equilíbrio, mesmo
que minha cabeça estivesse a mil, e a ponto de enfartar.
Peguei
sua ficha e perguntei:
-
Você é casado?
-
Sou, há vinte e dois anos.
-
Tem filhos?
-
Tenho uma, que fez 22 anos mês passado.
-
Ela estuda?
-
Trabalha de manhã como atendente no consultório médico, e de noite faz
faculdade de Direito.
-
Bom... É bom ter uma família... Vocês são religiosos?
Ele
deu um pigarro, e respondeu:
-
Eu sou católico, mas não frequento missa. Minha esposa e minha filha são
evangélicas.
-
Muito bom ter Deus dentro do seu coração - eu, o agnóstico, comentei secamente.
Li em voz alta o que ele escrevera na sua ficha: - Você tem o segundo grau,
nunca deixou de votar, serviu o quartel, sua ficha no Serasa e SPC estão OK...
Ah, mora em Niterói... Rua Lemos Cunha?
-
Sim, senhor, em Icaraí.
-
Casa própria?
-
Apartamento próprio, sim. Herdei dos meus pais.
-
Eles são vivos?
-
Infelizmente não, senhor. Minha mãe faleceu em 1985, e meu pai morreu em 2003.
-
Bem, isso é muito chato. Vou seguir aqui... estudou em qual colégio?
-
Guilherme Briggs e depois no Liceu Nilo Peçanha.
-
Dois colégios públicos. Mas isso não vem ao caso, não é mesmo? Vou fazer uma
pergunta. É necessário que seja o mais franco possível na resposta, porque
dependo dela para saber se posso contar ou não com você na minha empresa.
Ele
esperou minha pergunta. A testa dele porejava de gotinhas de suor, mesmo com o
ar condicionado gelando minha sala.
Se
eu estava nervoso, ele estava mais. Só que eu sabia porque estava nervoso, e
ele devia só sentir. O ambiente estava pesado. Fiz de propósito, claro.
Tirei
meus óculos e fitei-o nos olhos, sem piscar. Ele passou a língua em cima dos
lábios ressecados.
-
No ramo de vendas, existem amigos?
Ele
juntou as sobrancelhas, e a testa suada ficou enrugada. Sabia que era um teste,
e sabia que uma resposta errada seria um "espere nosso telefonema,
agradecemos sua presença."
Ele
pensou, retorceu mais ainda a testa e as sobrancelhas, enquanto eu mantinha
meus olhos fixos nele, com os dedos cruzados sobre a mesa.
-
E aí, José Fernando. Aqui não é nenhum programa de perguntas e respostas, mas
tem um tempo para responder.
-
É... vou ser muito sincero com o senhor... posso falar de mim, não dos
outros... - A hesitação dele me inebriava! - Na minha opinião, o melhor amigo
do vendedor é o seu bolso.
-
Está sugerindo que, na venda, é cada um por si e Deus por todos?
-
Não seria dessa forma. Se eu me preocupar com o problema do meu colega, eu não
vendo. E se não vender, o dinheiro não entra no meu bolso.
Fiquei
quieto, fingindo que degustava aquela resposta. Me surpreenderia se fosse
diferente. Decidi fazer uma última pergunta, a definitiva, a que ia admiti-lo:
-
Teria algum problema com sua família se fosse necessário fazer algumas viagens
a negócio?
-
Como assim?
Burro,
pensei. Sempre foi burro!
-
Às vezes tenho que visitar clientes em outros Estados, e normalmente levo um
vendedor comigo. Sua família faria objeções se precisasse se ausentar por uns
dias, no máximo uma semana? - Antes que ele respondesse, acrescentei: - Claro
que essa viagem é remunerada, porque não é sempre que efetuo o negócio na hora.
-
Sem nenhum problema, senhor.
Peguei
a caneta e rabisquei qualquer coisa na ficha. Disse depois:
-
Espere lá fora. Sabe que tem concorrentes para essa única vaga. Vou ser sincero
contigo. Gostei do seu jeito. Acredito mesmo que terá sucesso na empresa. Mas
não posso definir nada, não sem antes falar com meu supervisor e gerente.
Aguarde na salinha, minha assessora vai servir um lanche para vocês.
-
Obrigado, senhor...
-
Geraldo Nunes.
Esperei
uma reação. Mas o rosto dele continuou da mesma forma. Inerte. Bovino.
Estendi
a mão e ele apertou-a efusivamente. O contato daquela mão me enojou, mas me
limitei a sorrir. Sempre fingi bem.
Quando
ele saiu e fechou a porta atrás de si, arriei na minha cadeira e quase vomitei
na lixeira.
VII
Eu
sei que para vocês que estão lendo meus relatos agora, na certa não entendem do
que se trata. Calma que vou chegar lá, no ponto crucial. Primeiro quero mostrar
como me senti, depois vou contar o meu horror, para finalmente depois contar do
meu alívio.
Serei
julgado pelos meus atos, mas e os atos que aconteceram comigo, foram julgados?
Que nada. Ficou por isso mesmo. Todo mundo rindo, todo mundo seguindo sua vida
sossegado, enquanto que eu precisei, sozinho, sem ajuda de ninguém, me
levantar, sacudir a poeira e seguir adiante.
Tem
uma frase que diz: O tempo é o melhor remédio. Pode ser para alguns, porque
para mim, a doença continuou persistindo, e nenhum remédio conseguiu combatê-la.
Durante
minha vida toda, nunca desabafei, falei, das coisas que aconteceram comigo.
Devido ao meu silêncio, meus parentes e os poucos amigos sempre acharam que
tudo estava bom para mim. Olharam a casca, o miolo ninguém tinha acesso.
Nunca
achei que ia poder extravasar, gritar, comemorar, chorar, como todo mundo faz.
Via minha idade indo, chegando aos 50, e sempre com pesadelos, medo,
insegurança. Treinei bastante para macular meus defeitos, mas isso não bastava.
Bastou
o momento que o revi. Que falei com ele. Que o fiz se lembrar.
E
quando isso aconteceu comigo, foi como um orgasmo preso.
Pela
primeira vez na vida, me senti vivo em tudo. Vivo e livre!
VIII
Na
sala de reunião, eu tinha anotado o nome do aprovado. Que não foi unânime.
Leonora,
minha assistente, disse que o fulano de tal era mais gabaritado, o meu gerente
disse outro nome, e o supervisor manteve-se quieto. Ele nunca ia contra minhas
decisões.
-
Entendo que cada um tem sua opinião já formada, e um candidato escolhido. Mas
quero lembra-los quem manda aqui dentro. Quero que vocês se perguntem se eu
estou preocupado com suas escolhas.
-
Geraldo - disse Elias, meu gerente. - Se já escolheu, pra que quer nossa
presença na reunião?
Elias
era meu gerente há anos, e já me habituei com seus rompantes. Leonora era
outra. Intrometida, fiscalizava o que os vendedores faziam nos plantões e me
passava relatórios contando tudo. E Vander, meu supervisor, era um come-quieto,
que cumpria tudo o que eu mandava. Até de enfiar a cabeça no vaso sanitário, se
eu ordenasse.
-
Vou simplificar onde quero chegar. Hoje vou admitir o candidato José Fernando
Menezes, e a partir de amanhã, ele vai ocupar seu cargo, Vander.
O
supervisor pulou da cadeira assustado.
-
Mas,mas...
-
Nada de mas. Amanhã você será nomeado meu supervisor da área estratégica, que
trata dos nossos negócios no Rio. José Fernando, ou Fernando, ou Zé como
queiram, será o supervisor estadual.
E
antes que alguém se opusesse ( como se pudessem), me levantei e ordenei a
Leonora:
-
Avisa aos candidatos que já foi escolhido o novo supervisor.
Saí.
Não via a hora de iniciar o trabalho com o novo funcionário!
IX
No
seu primeiro dia de trabalho, o novo supervisor foi instalado em uma pequena
sala ao lado da minha. Mandei que desocupassem o antigo depósito para criar
essa salinha especialmente para que ele se sentisse em casa. E na parede
lateral da minha sala, só um vidro nos separava, e eu podia ficar de olho nele
também.
Tinha
que dar corda para ver se o peixe ia fisgar o anzol, pensei. Tirando o primeiro
dia, quando estive em sua sala para desejar boa sorte e sucesso, no restante da
semana mal apareci no escritório.
O
bom de ser dono de uma empresa é essa. Não preciso dar satisfações do que faço
ou deixo de fazer. Liguei para Leonora e a orientei que ficasse de olhos bem
abertos nos funcionários, especialmente no novo supervisor. Precisei incluir o
novo funcionário para que Leonora não desconfiasse de nada, mas na verdade
pouco me importava se ele ia trabalhar com dedicação ou ficar apenas jogando
conversa fora. Eu só o queria ao meu lado. Onde eu não o perdesse mais de
vista!
Nessa
minhas pequenas férias, aproveitei para organizar tudo. Fiquei isolado de
todos. Ninguém me ligou, nem souberam onde estive. Mas na verdade, eu era tido
como o parente estranho, o parente rico, o parente esnobe. E era mesmo. Se
fosse bonzinho, ou tivesse pena dos meus primos e irmãos desocupados, ia à
falência em dois tempos.
Quando
tem os aniversários das minhas tias ou de um irmão meu, sou o último a chegar e
nem esquento cadeira. Enquanto minha parentada entorna suas cervejas e trucidam
os salgadinhos gelados, eu chego, cumprimento o aniversariante e vou embora.
Sei que falam mal de mim. Que sou o eremita. Que a única coisa que faço para a
família famélica é o churrasco do mês, que me permito em recebê-los, mesmo a
contragosto, mas às vezes você precisa parecer sociável nos olhos dos outros.
Eu tenho uma casa especialmente para isso, na praia de Itaipuaçu. Eu sei que
meus parentes e os falsos amigos aguardam ansiosamente, chova ou faça sol, o
primeiro sábado do mês, para saborearem meu delicioso churrasco e se entupirem
do chope gelado.
Ainda
bem que nenhum urubu me ligou pra pedir nada, porque ao contrário de outras
vezes, quando me isolava do mundo e ficava trancado em casa lendo ou assistindo
filmes, dessa vez tive bastante trabalho. Quando vinha a noite, eu largava
tudo, ia tomar banho e ficava estirado na cama, com os ossos doendo. Esse que é
o mal da falta de exercício. Faço caminhada, às vezes corro pela orla, mas
trabalho braçal, de manhã até de noite, era novidade para mim.
Mas
valeu o sacrifício dos meus músculos em pandarecos, da dor nas costas e nas
pernas. Ia ter bastante tempo para me recuperar depois. O importante é que
ficou pronto.
X
Achei
interessante o relatório que Leonora fez durante minha ausência. Ela
especificou cada detalhe da conduta dos meus funcionários. Vi que tinham dois
que iam ser demitidos.
Não
me prolonguei naqueles que já conhecia, e prestei atenção no novo funcionário.
Me deu a impressão que Leonora não gostou muito dele. Ela anotou vários
detalhes nos primeiros dias dele.
QUANDO
ATENDE SEU CELULAR PARTICULAR, COSTUMA FICAR MAIS DE 30 MINUTOS FALANDO NELE. -
Era provável que falasse com a esposa. Dando notícias do novo emprego. Da
imensa sorte de conseguir a vaga de supervisor estadual.
UMA
MOÇA VEIO VISITA-LO DUAS VEZES NA SEMANA. - Agora era a filha. Não acredito que
seja uma namoradinha, ele não tem cacife para bancar uma ninfeta consumidora.
Pena que não a conheci. Tenho curiosidade de saber como ela é.
PERCEBI
QUE TEM MANIAS DE GRANDEZA. JÁ PAROU NO SALÃO DE VENDAS E O ASSUNTO SEMPRE GIRA
EM TORNO DE LUXO. - Ora, Leonora, ninguém é obrigado, porque é pobre, a querer
ficar pobre para o resto da vida. Deixe o homem sonhar. Sonhar não custa nada!
QUANDO
SAI PARA O ALMOÇO, LEVA MAIS DE DUAS HORAS NA RUA. - Fácil. O homem tem
espírito de vendedor. E vendedores não gostam de ficar presos em escritórios.
Deixa que ele respire o ar puro, veja gente andando na rua, beba um chopinho.
Deixa o homem desfrutar desses momentos. Por que depois, pode ficar meio
difícil ele sair tanto como agora.
E
tinha outras coisas sem importância. Larguei o relatório e decidi que precisava
conversar com o novo supervisor.
Ele
entrou na minha sala e convidei-o para se sentar.
-
Fernando, no sábado vamos fazer uma confraternização da empresa no clube
Aimorés. Gostaria que levasse sua família.
-
Claro, é claro! - disse ele, quase babando.
-
E é bom que se acostume com nossas reuniões. Prezo muito quando o funcionário
leva a família junto. Percebeu como somos unidos?
O
idiota mentiu, claro. Nunca fiz questão de me enturmar com os funcionários. Já
bastavam as confraternizações que aconteciam de dois em dois meses:
-
Ah, sim, senhor! E aproveito para mais uma vez agradecer toda a confiança que o
senhor depositou em mim e ao meu trabalho e...
-
Sábado, não se esqueça - Cortei o discursinho que ele começou. Me dava ânsias
de vômito de escutar sua voz. - E vamos ao que interessa! Aos negócios!
Ele
era grandalhão, e pela idade, meio desajeitado. Deu um meio-sorriso e pediu
licença e saiu. Respirei fundo. Sábado ia vê-lo ao natural, ao lado da sua
família. Precisava ver isso.
XI
O
clube Aimorés, para quem não conhece, fica na Taquara, em Jacarepaguá. É um
lugar amplo, com um campinho de futebol, mesas de sinuca e totó. Pra quem
gosta, tem mesa de ping-pong. Tem um lugar destinado para crianças pequenas com
orientadoras tomando conta e incentivando várias brincadeiras.
Mesas
de quatro cadeiras foram postas nos jardins do clube. Era um sábado ensolarado,
e muitos vieram de biquinis e sungas. Um deles era o novo supervisor. Chegou
com a família em um velho Fiat, encharcado de suor. Quando viu a piscina, a
primeira coisa que fez foi tirar a camisa e ficou só de bermudão. Saiu correndo
com aquele corpão cabeludo, e a barriga proeminente balançava a cada pisada na
grama, até que mergulhou de cabeça na piscina cheia de crianças.
Me
aproximei dele e o novo funcionário parecia que estava em casa, completamente à
vontade, enquanto espalhava água com as batidas que dava com seu braço gordo
como se estivesse nadando em uma olimpíada.
-
Olá, chefe! - disse ele, descontraído.- Não vai mergulhar? O calor tá de
rachar!
Olhei-o
e confesso. Minha vontade era dar as costas e tentar apagar da memória aquela
visão dantesca; o homem era calvo e fiapos do seu pouco cabelo colaram na testa.
Não fazia a barba há pelo menos dois dias, e fios grossos da barba brotavam
pelo rosto redondo. Quando mergulhou, um muco verde ficou pendurado na narina
direita, e ele nem percebeu.
-
Eu não gosto de piscinas - eu disse. Perto dele, eu era um nanico. Minha
estatura sempre foi magra, agora que criei uma massa muscular, mas devido à
idade. Posso me comparar como Davi e Golias... E não dizem, posso até me
enganar, mas os mais fracos são mais inteligentes que os brutos.
Minha
vantagem era essa. Eu gosto de pensar. E tenho tempo para pensar.
A
esposa e filha dele continuavam paradas, meio sem jeito, ao lado do Fiat. Fui
até elas e me apresentei.
-
Então vocês são a família do meu novo supervisor - tentei ser o mais simpático
possível, e acho que consegui. A mulher dele se apresentou, dizendo que seu
nome era Eunice e a filha, Isabela.
Olhei
a filha dele. Era magra e alta, e tinha espinhas no rosto. Pelo jeito como
olhava os pés, notei que era bastante tímida. Estava incomodada de estar ali,
no meio de uma multidão que não conhecia.
Por
um breve instante, me simpatizei com ela. Ela se parecia comigo, tempos atrás,
uma época que tentei apagar da minha cabeça, mas que insistentemente ressurgia
feito fênix.
Ele
saiu da piscina encharcado e pegou a sua camisa, que Eunice segurava,
obediente.
-
Esse é o meu chefe - disse ele, descontraído. Nada como um mergulho para
desinibir um falastrão! - E não é porque estou aqui na frente dele, mas posso
dizer que o Sr. Geraldo, em matéria de chefia, é nota dez!
Ele
pôs a camisa e olhou ao redor. Pelo deslumbramento, dava a impressão que era a
primeira vez que pisava num lugar como o clube. Como eu não estava nem um pouco
disposto de ficar ali parado enquanto o energúmeno exercitava seu lado
baba-ovo, dei uma desculpa qualquer e disse para se divertirem.
Sentei
na mesa com meu irmão mais velho, o Gabriel. Levei-o por mera consideração pela
sua recém- separação.
-
Gilberto - recebi seu telefonema na noite anterior. Sua voz era puro desespero.
- Amanda me largou! Pegou as roupas e vazou de casa!
Estranhei
que ela não tivesse feito aquilo antes. Gabriel era o tipo do parasita que se
baseava no único irmão bem sucedido financeiramente - que no caso, sou eu, - e
nunca parava em nenhum emprego. Anos atrás, fui obrigado a emprega-lo na minha
empresa depois que Gilda, minha irmã, insistiu em memória dos nossos pais. Fiz
o que ela pediu, e Gabriel não ficou nem dois meses. Primeiro se valeu pelo
fato do irmão mais novo ser o patrão, e por último, ao invés de vender,
desfazia as vendas! Resolvi ignorar as memórias paternas e chutei o balde.
Na
época, Gabriel já era casado com Amanda, e desde esse tempo, o relacionamento
deles não ia bem. Foi ele que me sugeriu para me casar. Bem, tá aí o exemplo do
meu irmão mais velho. Agora só Gilda era casada, e morava em São Paulo com a
família, e o caçula Giovanni, que morava em Brasília.
Agora
sobrou para mim o transtorno do meu irmão. Vocês que estão lendo vão imaginar:
"Esse Geraldo é um monstro! Despreza o próprio irmão!" Eu posso
responder com uma pergunta: "Como me afeiçoar com alguém que nem sabia que
você existe até um bom tempo atrás?" Antes que me critiquem, prestem
atenção no que escrevo. Prometo a vocês que não vou omitir absolutamente nada,
e o que não estão entendendo agora, vão saber depois.
Na
mesa, além de Gabriel (não eram onze horas, e já estava embriagado), Leonora
foi com sua amiga Bianca. Nunca me intrometi na vida particular dos meus
funcionários, meu lema é que cada um sabe o que faz da vida. Leonora, como
minha assistente, era eficaz. Ela procurava disfarçar para todo mundo sua
verdadeira opção sexual. Temia que os vendedores fizessem chacotas se soubessem
que vivia com uma mulher 15 anos mais jovem que ela. Particularmente, eu achava
uma bobagem. Infelizmente ainda existem preconceitos quanto às opções sexuais
de cada um, mas dentro da minha empresa todos sabiam que qualquer tipo de
discriminação, que fosse por sexual, ou se a pessoa era gorda, negra, judia...
bem, no mural tem exposto minha primeira norma que diz em letras garrafais:
EXTREMAMENTE PROIBIDO QUALQUER TIPO DE PIADA, INDIRETAS, OFENSAS, A QUALQUER
COISA. AQUELE QUE NÃO CUMPRIR MINHA ORDEM E FIZER NO AMBIENTE DE TRABALHO, SERÁ
DEMITIDO SUMARIAMENTE, SEM DIREITO A SEGUNDA CHANCE.
Quer
me ver irritado? Brinca com os mais fracos. Não quero bancar o herói das
minorias, mas aprendi na vida que se você tem ajuda, a discriminação cairia
bastante.
XII
A
melhor parte de uma festa regada a bastante bebida e comilança, é ver seus
funcionários se divertindo com a família. Eu, que não bebo, assistia sentado da
minha mesa os tombos, as brigas, os vendedores querendo vender seus peixes a
eles mesmos. Quando botavam uma música funk, via as esposas dos caras rebolando
ou se esfregando nas batidas do pancadão.
Havia
uma pista de dança que ficou lotada, no momento que o DJ pôs um batidão.
Detesto esse tipo de música, mas a maioria adorava.
Vi
meu novo supervisor se esbaldando na pista de dança. Rebolava suas ancas
gordas, e mexia com as mulheres que estavam sozinhas. Uma delas segurou sua
mão, e ele, na maior cara de pau, na frente da mesa que Eunice e Isabela
sentavam, agarrou a cintura da mulata que se esfregou nele na música anterior.
Olhei a cara de desagravo que Eunice
fez, e o rosto vermelho e cheio de espinhas que a filha mostrava. Havia
vergonha pelo que aquele homem fazia, mas nenhuma delas era capaz de dar um simples
comentário sobre aquilo.
Enquanto
elas se envergonhavam, eu fiquei satisfeito com aquela cena. Por mais que os
anos passem, o caráter das pessoas permanecem. Nunca mudam. Se você nasce com
uma índole boa, não vai ser as intempéries da vida que modificarão isso. Se
nasce ruim, morre pior ainda.
Ele
largou a mulata e se juntou com alguns vendedores. De onde eu estava, podia
ouvir o vozeirão dele, contando piadas obscenas e fazendo sua plateia cair na
gargalhada. Pra mim não era surpresa, ele sempre fora assim. Gostava de ser o
centro das atenções.
O
outrora candidato humilde, que suou na entrevista, tirou sua máscara e mostrou
o que era na verdade. Um tremendo filho da mãe!
Nas
confraternizações da minha empresa, fazíamos sorteios de televisão e outros
eletrodomésticos, para incentivar as vendas. Nesse dia, armei de propósito que
meu novo supervisor ganhasse o prêmio máximo.
Leonora
era a encarregada de misturar os papéis com os nomes dos funcionários. Ela
segurava um saco preto e disse, no microfone:
-
Agora... Vamos ver quem vai levar uma TV Smart 60 polegadas...
Balançou
o saco e passou para mim. Eu enfiei a mão no saco, mas já tinha escondido, o
papel com o nome dele. Passei para ela, que disse:
-
José Fernando! - Ela estranhou o papel amassado, me olhou desconfiada, mas não
disse nada. E nem podia. Quem pagou pela TV fui eu.
O
novo supervisor, que estava entre dezenas de participantes, pulou e agitou os
braços no ar, gritando:
-
Caramba! Nunca ganhei merda nenhuma na minha vida!
Ouvi
um vendedor comentando:
-
Que sortudo! Mal entrou na empresa e já faturou o melhor prêmio!
Ele
também ouviu o comentário que Lindomar, o vendedor fez. E aconteceu o que
previ.
Lindomar
era um sujeito magro, calvo e usava óculos de grau. Devia medir um metro e
sessenta. Um sujeito extremamente frágil.
O
novo supervisor troglodita aproximou-se dele. Pelo seu tamanho, Lindomar nem
apareceria na foto. Incentivado pelas caipirinhas e cervejas que bebera, disse,
ameaçando:
-
Tá querendo sugerir alguma coisa, "filé de borboleta"?
Alguns
vendedores, aqueles da mesma laia e filosofia do novato, gargalharam. Lindomar
pareceu perdido com aquele brutamontes parado na sua frente.
-
Não... - disse ele, afinando a voz. - Eu só...
-
Você o quê, fiapo de gente? Não tem noção de perigo?
Eunice
se aproximou e disse, timidamente:
-
Zé, deixa o moço em paz!
Pela
cara da esposa, aquela cena era habitual.
-
Não se mete com que não foi chamada, Eunice - ameaçou o brutamontes. - Minha
conversa é com esse fedelho aqui!
Lindomar
estava apavorado. Tinha mais de cinquenta anos, e o outro o chamou de fedelho!
-
José Fernando - disse Lindomar, buscando um respingo de coragem. - Não vejo
motivo para toda grosseria...
Leonora
tocou meu braço e disse, assustada:
-
Não vai fazer nada, seu Geraldo?
Tirei
a mão dela do meu braço e falei:
-
Quero ver até onde chega esse circo todo.
-
E se ele bater no Lindomar...
-
Ele não vai bater - eu disse. Mas podia completar "agora".
O
ser humano convive com seu caráter desde que nasce até sua morte. Não muda. A
pessoa é o que é, e ponto final.
Monteiro,
outro vendedor antigo na minha empresa, se meteu entre o novo supervisor e
Lindomar.
-
Vamos acabar com essa discussão agora - disse ele, autoritário. Não era forte
como o truculento novato, mas tinha personalidade forte. - Ei, Zé! Acabou de
entrar na empresa e já tá arrumando confusão?
O
novo supervisor encolheu. Isso. Encolheu. Sempre desconfiei que os valentões
tremem quando alguém de personalidade forte os encara.
O
mais forte só se vale nos fracos em espírito. Como eu, no passado.
Naquela
roda de vendedores bêbados estava faltando uma pessoa, mas que não demorou
muito. Mais alto que todos juntos, meu irmão, o intrometido, se infiltrou na
roda cambaleando e segurando um copo cheio de cerveja. Vi Leonora balançar a
cabeça e murmurar:
-
Só faltava ele...
-
Agora não falta mais.
Aos
gritos de ordem, Gabriel esbarrava nos vendedores e dizia:
-
Bando de pé d'água! Ou param agora com essa babaquice ou falo com o patrão de
vocês para que nunca mais patrocine nenhuma festa, nem a de fim de ano!
Agora
o meu intrometido irmão era o meu porta-voz. Se fosse a tempos atrás, ficaria
furioso. Mas confesso que essa festa estava sendo especial para mim. Pela
primeira vez, me diverti nesse tipo de reunião. Como gostei de analisar a
mediocridade da alma humana.
Eunice
puxava seu marido pelo braço, e a expressão que seu rosto tinha era o de
remorso. Mas decifrei rápido esse remorso. Não era pelo seu porre, nem por ter
ameaçado o indefeso Lindomar. O arrependimento era pelo medo de perder o
emprego "mais fácil" que ele arrumou.
Eu
e Leonora estávamos na mesa quando ele chegou, ainda com a esposa a tiracolo e
sua filha cabisbaixa atrás deles. Pediu licença e sentou-se ao meu lado. Quando
falou, evitou meus olhos, mirava seu tênis encardido:
-
Chefe... Peço que me perdoe pelo que houve há pouco...
-
Esqueça - eu disse, sorrindo. - Isso aí acontece sempre.
-
Não sei o que houve comigo - disse ele, ainda evitando me encarar de frente. -
Nunca agi assim com ninguém! Sempre fui um cara manso, pacato. Detesto qualquer
tipo de agressão, de violência. Tenho muita raiva de pessoas que praticam
covardia com pessoas indefesas...
Quase
que gritei na cara dele: Para de falar! Se abrir essa boca imunda mais uma vez,
vou acabar vomitando na sua cara!
Escrevi
isso agora, depois que tudo aconteceu. É mais fácil colocar nossas ideias em
ordem quando estamos tranquilos, na nossa casa, sozinho, com o word ligado e
transcrevendo o que houve para a posteridade. Mas naquele dia, quase perdi
minha paciência quando ele veio com sua ladainha. Vocês não imaginam como controlei
meus instintos, com o troglodita ao meu lado!
Voltando
à festa, eu...
Depois
eu conto. Ainda tem mais um detalhe que aconteceu na festa, e dessa vez, tem a
participação especial do meu irmão mais velho. Não posso omitir isso das minhas
memórias.
Por
isso, vou dedicar esse fato a um novo capítulo. Preciso escrever sobre isso,
porque vai ter influência no que aconteceu depois.
XIII
Agora
imaginem a cena. Um clube campestre, convidados embriagados se empanturrando de
carne e bebidas, crianças brincando com orientadores contratados ou na piscina,
as esposas dos vendedores conversando entre elas numa rodinha regada a muita
fofocalhada, música tocando a todo volume e pessoas na pista dançando, todas
mesas ocupadas com meus funcionários e uma mesa especialmente preparada para
mim e minha assistente, que levou sua amiga como companhia. Hei de registrar
que nessa mesa, nunca, mas nunca mesmo, nenhum vendedor, supervisor ou gerente
sentou-se nela. Não era uma ordem, mas era implícito do meu desconforto de dividir
a mesa com funcionários - à exceção da minha assistente, além de ser a minha
funcionária mais antiga, era meu braço direito. Fechando o quadro que descrevi,
imaginem a cara dos meus funcionários quando viram o novo supervisor sentado na
minha mesa, ao meu lado, falando comigo! Claro que ficaram surpresos, eu sou
tido como inatingível, onipresente. A inveja em cima do novato deve ter sido
unânime!
-
Não quero que pense mal de mim, chefe - ele continuava com sua ladainha e ainda
evitava me olhar nos olhos. - Preciso muito desse emprego... É difícil, quase
impossível, que alguém da minha idade consiga um trabalho gratificante como
tenho hoje.
-
Já disse, não se preocupe com isso. Tem que se preocupar agora é como vai levar
a televisão para casa. Ela é sua, esqueceu?
Ele
olhou a grande caixa fechada da Smart e fez a pergunta que eu já esperava
ouvir; vindo de um sujeito daqueles, estranharia se fosse o contrário:
-
Ué... Não entregam em casa?
Eunice
e a filha dele, ambas em pé ao lado dele, disseram ao mesmo tempo:
-
Claro que não!
-
E como vou levar esse trambolhão no meu carro? - comentou o ingrato.
Eu
acudi o imbecil:
-
Vou providenciar que entreguem na sua casa, Fernando. Não se preocupe com isso
e se divirta.
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