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sexta-feira, 8 de maio de 2015

ACREDITEM EM MIM (Da série vale a pena ler de novo)

- Doutor, preciso que o senhor acredite em mim. Isso mesmo, não tive culpa do que teve ontem, juro pro senhor por tudo que é mais sagrado que aquilo tudo foi um acidente. Eu não esperava que terminasse daquele jeito. Sei que é difícil pro senhor acreditar no que eu disse diante dos fatos, mas lhe garanto que é a mais pura verdade. O senhor comentou ontem que muitos que vem aqui na sua sala falam a mesma coisa. Eu não sei dos outros, doutor, só sei que comigo o que viram não era o que parecia.
"O senhor pode dar uma olhada aí na minha carteira. Olha meu crachá. Sou um trabalhador, doutor, sou encarregado de obras na America Construções tem mais de três anos.
"Que isso, doutor!  O crachá não é falso. Olha para minha cara. O senhor acha mesmo que levo jeito de quem falsifica alguma coisa, que faz documentos... nem DVD pirata eu compro, doutor.!Peço que o senhor ligue para a empresa; aí no crachá tem o telefone deles. Dona Yolanda que é do departamento pessoal que vai atender a ligação e pode confirmar tudo que disse agora para o senhor.
"Eu não estou enrolando ninguém, doutor! Olha só, nem advogado tenho para me defender. Mas agora não me importo se tenho advogado ou não, tanto que vou novamente contar o que aconteceu ,porque quem não deve não teme, e o senhor vai ver que o inocente na história sou eu.
"Isso mesmo, meu nome é Antônio Silva, fiz 35 anos em janeiro, sou casado e o nome da minha esposa é Marieta Silva e temos três filhos, que é o Júnior, a Clarice e o Ivan. Sempre fui um homem para minha família, nunca fui ligado em nenhuma facção nem minha família. Somos tementes a Deus, doutor, frequentamos o culto na igreja Jesus Tem Poder com o Pastor Nilson. Se forem lá para averiguar, ele confirma.
" O que o senhor acabou de falar dos bandidos que andam armados, metem terror, matam ou vendem drogas nas ruas e se mostram arrogantes e cruéis, mas quando entram aqui , chegam com a cabeça baixa, choram, se dizem crentes a Deus, e que são mais humildes e mais vítimas que as próprias vítimas; bem,  doutor, isso pode servir para os bandidos,  com certeza isso não me atinge, porque como disse e repeti, eu sou inocente.
" O sargento Pimenta que está aqui no meu lado, foi testemunha do que houve, doutor.
" Juro pela saúde dos meus filhos que na hora que sair daqui vou direto para minha casa. Prometo ao senhor que não vou em nenhum grupo de direitos humanos pra contar a eles dos tapas que levei. Não, não vou fazer nada disso. Quero mais é sair daqui e passar uma borracha nisso tudo e continuar seguindo minha vida, doutor.
"O que eu fazia aquela hora da noite na Presidente Vargas? Eu tava andando pro terminal para pegar o último ônibus da noite.
"O que tem a ver que o endereço da empresa é no Méier e que eu estava na Presidente Vargas às onze e meia da noite? Nada a ver. O ônibus que pego fica lá atrás da Central no Américo Fontinelli; moro em Coelho Branco, já ouviu falar? Isso mesmo, perto de Nova Iguaçu.
"O senhor está sugerindo que no depoimento que dei ontem tá meio confuso, que trabalho em um bairro e depois estou no centro... De trem? Não gosto de andar de trem, doutor. Como tenho meu bilhete único, prefiro andar de ônibus.
"Não tem nada estranho que eu estivesse na Presidente Vargas com a rua Miguel Couto. Sei que fica longe da Central do Brasil. Quando peguei o ônibus no Méier, encostei a cabeça na janela e cochilei. Nem foi bem um cochilo,apaguei mesmo. Nem vi quando passou do ponto da Central e quando me dei conta, fui acordar na Rio Branco. Pedi pro piloto parar e desci na esquina  da Ouvidor. Dali peguei a Miguel Couto e fui pra Presidente Vargas....
"Que foi que o senhor disse? Não entendi direito...Que existe uma ocorrência com meu nome aqui com o senhor? Com certeza deve ser de outra pessoa, doutor. Tem meu nome Antônio da Silva... Brincadeira doutor, só aqui no Rio deve ter centenas ou milhares de pessoas com o nome  de Antônio da Silva...
"Sargento, o senhor podia tirar essas algemas? Tão arranhando meus pulsos... Não pode? Primeiro tem que acabar o depoimento? Estou prestando novamente outro depoimento?  Calma, não estou me fazendo de idiota, Sargento. Não, é que achei...
" O senhor viu agora doutor! Pedi com educação que me tirasse  as algemas e o Sargento Pimenta me deu esse tapa na cabeça. O quê? O senhor não viu nada? Que tava lendo o depoimento de  ontem e comparando com que estou falando agora... sei... mas quero que nesse depoimento esteja bem claro que estou me declarando inocente de tudo que houve na noite de ontem.
"Posso dar um telefonema? Preciso avisar pra minha mulher que ainda vou demorar um pouco... Não posso? Não tenho direito a um telefonema... Mas todo mundo tem!
"Ai, não me bata mais sargento, não quero mais telefonar pra ninguém. Sim, vou continuar a história...
"Sabe que ali na Presidente Vargas andar à noite é perigosa, lá tem muitos  pivetes, viciados que aproveitam de gente que andam sozinhas.
"Esse era o meu caso, doutor. Recebi meu salário ontem em dinheiro, e escondi tudo nos bolsos da minha calça. Por falar em salário, o Sargento Pimenta tomou ele todo quando nos encontramos. Ainda não me deram o documento para assinar dos meus objetos de valor que foi apreendido ontem.
"Tava eu indo pela Miguel Couto apertando meus passos, porque além de pouca iluminação, não tinha viva alma perto. Nenhum barzinho aberto, nenhum camelôs vendendo cerveja na Uruguaiana. As ruas em volta eram um deserto só...
"Quando parei na esquina da Presidente Vargas,  foi aí que ele apareceu do nada. Devia estar escondido em algum canto na Bueno Aires, ou ali perto da igreja do Rosário... Onde ele estava mesmo não sei dizer. Só sei que ele apareceu na minha frente me apontando uma faca, falando 'perdeu, perdeu!' gritando que queria dinheiro.
" Como ele era o sujeito? Você viu, Sargento. Magro, 1,70m, cabeludo, barbudo...
"Agora entendi onde quis chegar, tenho 1,87 de altura, cem quilos, e sou forte. Sim, sou muito forte...
" Isso, também sou negro, peão de obra e o garoto que me ameaçava com a faca pra me roubar não pesava mais que sessenta quilos e era branco e louro. Irônico? Não sei se a palavra certa é ironia, estou dizendo só a verdade.
"O que houve depois que ele apareceu na minha frente armado com a faca? Fiquei onde estava parado, só pensando no meu salário que  escondi nos bolsos da calça...
"O garoto girava a faca de um lado ao outro, gritando que eu entregasse toda grana que eu tivesse ali. Algumas palavras  que ele falava eu não entendi muito bem, ele tava com jeito que tinha muita droga na cabeça. Procurei ficar na minha porque sei que com um viciado em crack todo cuidado é pouco e é arriscado enfrenta-lo na mão pura. Para esses caras é tudo ou nada. Mesmo correndo perigo, não ia entregar meu dinheiro de bandeja assim de graça.
"Consegui manter uma certa distância dele me protegendo que ele me furasse, depois pensei na família que tenho e que dependem de mim. O garoto babava, xingava, ameaçava, e como não tinha ninguém perto para me ajudar fui obrigado a tomar uma decisão rápido.
"Aproveitei o instante que o garoto fez um movimento com a faca para o lado e saltei em cima dele. Caí com meu peso em cima dele no chão e segurei o pulso dele,  e assim consegui imobilizar a mão que segurava a faca, e com outra mão dei dois ou três murros na boca do garoto.
"Minha mão ficou suja com o sangue que saía aos borbotões da boca dele. Quebrei uns dentes dele também, mas mesmo assim o moleque ficou se contorcendo embaixo de mim parecendo um bicho, cuspiu sangue na minha cara e berrava que ia me matar.
"Não sei de onde veio dele aquela força todo que torceu meu braço quando conseguiu levantar sua mão que eu agarrava, e vi a ponta da faca chegando bem perto dos meus olhos. Precisei usar toda minha força para torcer de novo o braço dele para baixo, a mão virou e caiu rápido e pesado... ouvi um barulho estranho e vi que a faca cravou nele bem fundo.
"Ficamos cara a cara, e os olhos dele foram se esbugalhando, e acabou que ele golfou e saiu mais sangue. Levantei, sacudi a poeira na minha roupa e ele continuou deitado.
" Me abaixei, arranquei a faca dele tentando ver se podia ajuda-lo; procurei nos bolsos da calça jeans dele para ver se achava algum documento. Foi aí que apareceu o camburão da polícia na avenida, e o Sargento Pimenta e mais dois policiais desceram da viatura e vieram até onde eu estava.
"Antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa, os PMs sacaram suas armas e apontaram para mim. Mandaram que eu ficasse deitado de barriga para baixo, puxaram  meus braços para trás e me algemaram.
"Tentei argumentar mas o Sargento Pimenta me revistou e pegou todo meu salário. Ouvi ele dizendo para outro PM: Esse aqui tá ferrado, tivemos sorte de pegarmos esse vagabundo em flagrante.
"Foi isso que realmente aconteceu ontem a noite...
"O quê? Quer que repita de novo a minha história e que eu diga verdade? Não tem mais nada pra contar, doutor...
"Doutor, nunca fui fichado e também nunca estive envolvido em nenhum crime...
"O retrato aí na sua frente com meu nome é de uma outra pessoa, não sou eu...
"Nem tá dando pra ver direito o retrato desse cara... a foto está escura...
"Não,nunca ouvi esse nome antes... Diogo Torres...
"Esse era o nome do garoto que morreu... empresário com um escritório na Presidente Vargas 590...
"O que sei que esse garoto, Diogo Torres ou outro nome que tenha, apareceu na minha frente me ameaçando com uma faca e falando que ia me matar...
"Não acredita na minha história?
"Pra eu assinar minha confissão?
"Que confissão se não fiz nada...
"Estava me defendendo dele...
"Meu Deus, não sou eu esse homem do retrato, já disse mil vezes. Olhem, nem dá para ver a cara dele direito...
"Ai, ui, por favor não me batam... Ai, ai...
"Não vou assinar droga nenhuma de papel em branco!!
"Preciso telefonar...
"Não sou nenhum assassino,  eu sou a vítima, doutor!
"Tinha que ligar para minha mulher...
"Se assinar, vocês vão me liberar?
"Ela deve estar muito preocupada, nunca passei uma noite fora de casa...
"Claro que não estou tirando sarro com a cara de ninguém!
"Essa cela tá muito cheia... Sargento, por favor, liga pra empresa...
"Eles confirmam que sou trabalhador...
"Esse dinheiro que você pegou dos meus bolsos são do meu salário, nunca foi daquele garoto. Eu não roubei nada...
"Volte aqui, doutor, precisa me escutar, eu não fiz nada... Acredite em mim!"

Rogerio de C. Ribeiro

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